Opinião

Culpas no Cartão

Atenção: o tema a ser discutido nas próxima linhas poderá ferir a suscetibilidade de algumas pessoas. E dividirá, com certeza, opiniões.

Por trás de uma aparente inofensiva campanha de sensibilização, parece-me a mim claro que há um instalar de sentimentos de culpa, de pecado, que não podem ser ignorados.

Mas onde, porquê, por que carga de água, qual a lógica, o que é que se passou, o que é que eu perdi, para ser surpreendida de repente com a notícia de que os maços de tabaco vão passar a ter imagens chocantes de pessoas com cancro, de pulmões destruídos, de malefícios extremos que fumar provoca nas gentes? Em bom monchiqueiro me pergunto: “Heim?”

Ainda existe alguém que não saiba que o tabaco faz mal? Alguém duvida que o inalar e inspirar cerca de 4000 químicos diferentes é capaz, de efetivamente, fazer adoecer e destruir quem decide fumar? Não. Ninguém questiona que, para além de muito caro, o tabaco é extremamente nocivo para a saúde. Mas… Porque é que uma pessoa que decide, de sua livre vontade (!), continuar a fumar, terá que visualizar, maço após maço, o quão mal está a fazer a si própria? Qual é o objetivo? As pessoas não vão deixar de fumar por causa de imagens aterradoras que se lhes esfregam na cara. As pessoas vão, como sempre acontece, tornar-se insensíveis a essas mesmas imagens, e continuar a seguir com a sua vida, com mais ou menos saúde que antes.

Seguindo a lógica da instauração da culpa à descarada – literalmente à descarada, à vista de todos, de todos os olhos – deveremos então atuar da seguinte maneira: colocar imagens de pessoas com obesidade mórbida nas embalagens de chocolates; imagens de pessoas que amputaram pernas e braços devido aos diabetes em todos os pacotes de açúcar. Imagens de pessoas que sofreram AVC’s nas caixas de pílulas. E não é verdade que comer carne aumenta a probabilidade de desenvolver cancro? Imagens cancerígenas nas embalagens da carne. Imagens de pessoas com cancro de pele em todas as praias.

E se estamos numa de consciencializar e alertar as pessoas para as problemáticas sociais, não esqueçamos: imagens dos animais nos matadouros em cada lata de salsichas. Imagens de trabalho infantil forçado na África e na Ásia em toda a roupa “made in China” e afins.

Extremista, não é? Mas a lista de culpas que podem ser esfregadas na nossa cara, com os nossos comportamentos do dia-a-dia, não termina aqui. Aliás: a lista é infinita. Podia continuá-la dias a fio. E no final, faltaria espaço. Então para quê este disparate?

Oscar Wilde, sabiamente, escreveu: “consigo resistir a tudo, menos à tentação”. Ainda que tenham passado mais de cem anos desde que este génio da literatura nos deixou, a discussão continua atual. Devemos ou não deixar-nos cair em tentação? A Igreja diz que não, os nossos comportamentos dizem que sim. Podemos encontrar culpa e malefícios em praticamente tudo o que nos dá prazer.

É claro para todos que há prazeres que não podem ser. Se violam direitos humanos e as leis básicas tanto jurídicas como do bom senso, então não podem ser. Ponto final. Todos os outros prazeres, desde que não interfiram com a liberdade do outro, devem ser respeitados sem ser preciso que venha uma velha de cajado em punho dizer-nos que o que estamos a fazer é errado e pecaminoso (em psicologia, a velha responde pelo nome de superego).

Será que as pessoas deviam adotar estilos de vida mais saudáveis? Certamente que sim. Será que as que decidem continuar a prejudicar a sua saúde deveriam sentir-se culpadas e expostas aos malefícios das suas escolhas de forma tão direta e indelicada? Valendo aquilo que vale, a minha resposta é, inequivocamente, não.

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