Convento de Nossa Senhora do Desterro: conhecer para valorizar
«Sobranceiras à vila de Monchique, e a muito curta distância, para o lado do poente, erguem-se as ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro, lugar muito aprazível e donde se desfruta um dos mais belos panoramas desta encantadora região. Um pouco abaixo destas ruínas encontra-se a bela magnólia, árvore multicentenária e que, numa descrição que dela fez o rev.º Silva Tavares, na revista Broteria, diz ser a maior do País». Na primeira metade do século XX, na sua Monografia sobre Monchique, José António Guerreiro Gascon descrevia desta forma o estado de conservação daquele edifício religioso e de toda a sua envolvência. Hoje, passadas várias décadas sobre a altura em que estas palavras foram redigidas, é possível verificar que pouca coisa mudou. As ruínas continuam lá, mas apresentam um elevado estado de degradação e a referida magnólia, árvore centenária, não sobreviveu ao passar dos anos e acabou por desaparecer por completo. Apenas a vista e o belíssimo panorama sobre a vila continuam imponentes, aguardando por uma solução de valorização patrimonial daquele imóvel que é uma das maiores referências históricas deste concelho serrano.
Os factos histórico dão conta que o Convento de Nossa Senhora do Desterro foi fundado em 1631 por Pedro da Silva, também conhecido por «O Mole», que foi ainda Vice-Rei da Índia, cujas armas surgem inscritas no brasão existente na fachada e sobre a capela-mor da igreja. A 20 de março de 1632, o edifício foi entregue à Ordem Terceira regular de São Francisco, sendo provincial o padre Frei Manuel de Santo António. Por seu turno, a lenda associada à fundação deste edifício tem por base o cumprimento de um voto feito em alto mar por dois navegantes que se encontravam em perigo e que terão prometido a construção de uma igreja «no lugar de terra de Portugal que primeiro avistassem do mar». A lenda acrescenta ainda que o fundador do convento trouxera consigo da Índia uma pequena imagem de Nossa Senhora, em marfim, a qual, após a sua morte, foi muito venerada pelos frades que «para a salvar do vendaval de 1834 um deles a escondeu debaixo do hábito e foi pedir a uma senhora que a recolhesse».
De acordo com José Gascon «o edifício do convento era um quadrilátero (…), tendo o lado oriental constituído pelo comprimento do átrio, corpo da igreja e capela-mor, o lado norte pela antiga sacristia e ruínas de uma antiga capela que não se sabe o que fosse, o lado poente, pela frente desta capela e celas e o lado sul, também ocupado por cela, a frente da igreja e a torre». Para além do claustro situado ao centro, existia ainda um átrio que tinha a denominação de «Portaria», que correspondia ao local onde «os pobres da vila iam receber os caldos que os frades lhes davam». O refeitório, situado a ponte, possuía três mesas «constituídas por grossos pranchões de madeira assentes nuns pés de alvenaria». Destas, a mais pequena, localizada ao fundo da sala, estava destinada «ao superior do convento e a mais um ou dois membros mais graduados da comunidade» e, na parede atrás de si, existia um painel de azulejos representando a «Última Ceia». À entrada desta sala, no canto esquerdo, existia um púlpito destinado à leitura e à direita da mesma divisão estava localizada a cozinha do convento. A igreja, de nave única, possuía um púlpito e coro alto e comunicava com a capela dos irmãos terceiros. O templo estava decorado com «ricos paramentos e peças curiosas com que a enriqueceu o seu fundador», os quais, no século XIX, acabaram distribuídos por outros templos religiosos do concelho de Monchique e Aljezur, a par do relógio e dos sinos que compunham a torre, que foram transferidos em 1842, para o edifício da câmara municipal, então situado na rua da cadeia. Ainda no decorrer da extinção das ordens religiosas em 1834 e da consequente venda dos bens nacionais, a 14 de abril de 1842, foi vendido em praça «um prédio rústico e urbano na vila de Monchique (…), o qual se compõe do Edifício do Convento dos Religiosos Franciscanos, com todas as suas oficinas, de cerca anexa, e de duas fazendas contíguas, constando a primeira de terra de semear, matos e uma casa e a segunda de pomar de castanheiros e de duas cercas para semear».
Nos «Subsídios para a Monografia de Monchique», José Guerreiro Gascon refere que na data em que o convento foi fundado, era pároco na paróquia (freguesia) de Monchique Manuel Luís Covas, que era auxiliado pelo padre Diogo Jorge Duarte. Já os religiosos do convento também prestavam «muitos serviços paroquiais na igreja matriz, auxiliando ou substituindo os párocos, especialmente na Quaresma». Através das Memórias Paroquiais de 1758, é possível perceber que este edifício ficou bastante afetado com o terramoto de 1755, uma vez que «lhe cahio parte das abobadas da Igreja e Capela Mor os campanarios, sinos e frontespicio em cujas ruínas morrerão duas pessoas, ficando algumas mais feridas, e entulhadas e ahinda juntamente huma parte do Dormitorio e claustro e cazas do comum ficando tudo o mais arruinado e os muros todos por Terra». O imóvel foi reconstruído após esta catástrofe, mas aquando do seu abandono no século XIX, entrou em estado de degradação. Na página da Internet www.monumentos.pt, surge indicado com a proteção relativa a «em vias de classificação (Homologado como IIP – Imóvel de Interesse Público, Despacho de julho 1981) / Incluído no Plano Sectorial da Rede Natura 2000: Sítio de Interesse Comunitário Monchique (PTCON0037)».
O processo de intervenção em qualquer edifício histórico é muito complexo, devendo obedecer a diversos princípios basilares fixados pela legislação (nacional e internacional) e por diversas cartas de património cultural. De uma forma geral, a conservação dos edifícios históricos «deve estar sujeita a um código de ética próprio e bem definido, que balize de forma clara e inequívoca os limites admissíveis a esse tipo de operações». Por exemplo, o decreto-lei n.º 140/2009 de 15 de junho é bastante claro quanto aos procedimentos a ter em conta no que diz respeito aos estudos, projetos, obras ou intervenções em bens culturais classificados, ou em vias de classificação, pois «pressupõe necessariamente a existência de um relatório prévio, elaborado por técnicos legalmente qualificados, em relação às obras ou intervenções, bem como o acompanhamento destas pela administração do património cultural competente e ainda a entrega de um relatório final».
Importa, antes de mais, esclarecer o conceito de conservação, que de acordo com Fernando Henriques, engloba «todo o conjunto de ações destinadas a prolongar o tempo de vida duma dada edificação histórica», o qual pode englobar um ou vários conceitos, que corresponde «a um tipo de intervenção progressivamente maior». Os cinco conceitos designados são: manutenção, reparação, restauro, reabilitação e reconstrução. Ora, tendo em conta as definições apresentadas pelo mesmo autor para estas intervenções, é possível perspetivar, numa eventual situação de conservação do Convento de Nossa Senhora do Desterro, as operações de «restauro» e «reabilitação». A primeira está relacionada com a intenção de «restabelecer a unidade da edificação do ponto de vista da sua conceção e legibilidade originais, ou relativa a uma dada época ou conjunto de épocas», tendo por base investigações e análises históricas e a utilização de materiais diferenciadores entre o original e o não original. Já a reabilitação pretende «aumentar os níveis de qualidade de um edifício», sendo utilizada «sempre que se pretenda adaptar o edifício a outros usos ou simplesmente torna-lo utilizável de acordo com os padrões atuais». Associado a isto, surge uma das regras mais importantes no que se refere à conservação dos monumentos históricos, é o princípio da reversibilidade e da intervenção mínima que corresponde à aplicação de materiais que, num dado momento, possam ser retirados sem que isso retire subsistência ao pré-edificado. A Carta de Cracóvia acompanha este pressuposta ao referir que «a intervenção escolhida deve respeitar a função original e assegurar a compatibilidade com os materiais, as estruturas e os valores arquitectónicos existentes»,pelo que «quaisquer novos materiais ou tecnologias devem ser rigorosamente testados, comparados e experimentados antes da respetiva aplicação».
Segundo a Carta de Veneza, «a conservação dos monumentos é sempre favorecida pela sua adaptação a uma função útil à sociedade: esta afetação é pois desejável, mas não pode nem deve alterar a disposição e a decoração dos edifícios. É assim dentro destes limites que se devem conceber e que se podem autorizar as adaptações tornadas necessárias, exigidas pela evolução dos usos e dos costumes». Neste sentido, a abordagem interventiva aos edifícios terá que respeitar estes trâmites, complementados pelos pontos descriminados no caderno de encargos do processo de intervenção, onde também se decreta toda a burocracia e as normas a respeitar por empreiteiros, donos de obra e fiscalização. Outro pormenor a ter em consideração no momento de proceder à intervenção tem que ver com os instrumentos de gestão territorial, como o Plano Diretor Municipal (PDM), do qual se destacam os condicionantes, no que toca às servidões portuárias, rodoviárias, da rede elétrica e património cultural, entre outras, mas também de ordenamento, relacionado com as infraestruturas, espaços urbanos e não urbanos. Acresce ainda o facto de que «a conservação e o restauro dos monumentos constituem uma disciplina que apela à colaboração de todas as ciências e de todas as técnicas que possam contribuir para o estudo e salvaguarda o património patrimonial», pelo que seria desejável a colaboração de uma equipa multidisciplinar, da qual deve fazer parte, entre outros profissionais, arqueólogos, engenheiros civis e arquitetos, de forma a garantir a permanência dessas estruturas, sem alterar a decoração do imóvel ou suprimir e alterar as marcas do tempo.
Bibliografia:
GASCON, José António Guerreiro, «Subsídios para a Monografia de Monchique», 2.ª edição (facsimiliada), Algarve em Foco Editora, Vila Real de Santo António, 1993;
HENRIQUES, Fernando M.A., «A conservação do património histórico e edificado», 2.ª edição, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 2005
MENDES, José Amado, «Estudos de Património: Museus e Educação», 2.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
Carta de Veneza (1964);
Carta de Cracóvia (2000);
Decreto-Lei n.º 140/2009 de 15 de Junho;
Lei Base do Património Cultural – Lei n.º 107/2001.
Artigo publicado na edição n.° 471, de 28 de fevereiro de 2023
Foto: Arquivo Jornal de Monchique