Círios de sal
“Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído’’
Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Pranto pelo dia de hoje” – Livro Sexto
Perdoem-me a ousadia: Ó mar salgado quanto do teu sal acende círios de lágrimas nos olhos dos Sírios…
Há muitos anos estive numa praia do Mediterrâneo. A areia era cinzenta de sujidade e a água, quente e espessa, também acinzentada. A densidade do sal empurrava-nos para cima como mãos invisíveis. Boiávamos naturalmente ao sabor da ondulação como uma longa telha de cortiça. Quase podíamos adormecer. Não sei se hoje ainda é assim. A densidade salina talvez seja ainda mais acentuada, mas o “adormecer” naquelas águas já não podemos – carrega-nos por demais o peso dos mortos. E as lágrimas dos vivos formam estalactites que se acendem na dor, que cintilam na noite. Não só dos sírios – de todo um mundo em pranto.
É a fuga. É o medo. É a guerra. É a cruel animalidade dos homens – quem sabe se a diabólica ambição do “oiro negro”, ou a represália remota pela conquista do Andaluz…
Kafka, com palavras que nos fazem gelar o sangue nas veias, diz: «Os cães de caça brincam ainda no pátio mas a presa não lhes escapará, por muito que corra já pelas florestas». E Graça Morais – com a sua pintura “histórica” marcada pela crueldade deste “Tempo de Assassinos”, na exposição Os Desastres da Guerra, em 2013, mostrou-nos já a presa abocanhada pelos cães de caça. E justifica-se: ”Estas pinturas e desenhos são o meu grito de alerta e revolta perante um mundo que apreendo através dos jornais, das televisões e dos media e que também sinto no olhar das pessoas com quem me cruzo no meu quotidiano, numa cumplicidade de olhares cheios de dignidade mas também de muito sofrimento. (outubro.2012).(…) Fuga do Caos e do Abismo. São milhares de seres humanos que migram em busca de um futuro melhor. Fugidos de guerras, de genocídios, do terrorismo, de catástrofes naturais, lutando numa cruzada contra a fome, a doença, as injustiças sociais e as perseguições políticas.» (janeiro 2013).
Tem sido o assunto de todos os dias, de todas as horas de noticiários, de todas as capas dos jornais. Confesso que não entendo a fórmula política deste elixir de desumanidade, de perseguição e de morte. Auschwitz foi um percurso que acabava num lugar. As migrações, hoje, são uma fuga que acaba na rejeição e na impiedade, na morte da alma porque o corpo, esse, caíu vencido logo à partida. Repugna-me olhar para as imagens que recuso ver – são obscenas. Tantas crianças, tantos jovens, homens e mulheres que se arriscaram a dar as vidas pela sua liberdade, vomitados à praia, cuspidos na areia, feitos velas a arder nos olhos dos vivos… a fuga desesperada e explorada pelos mercadores de mortos…o remoinho, o vórtice dos que conseguem arribar, rolando por muitos caminhos (países), filtrados pela força centrífuga do fosso…das fronteiras cercadas por arame farpado e por vigilância com ordem para matar…o outro, lá dos antípodas, que se escondeu em cima do comboio de mercadorias para atravessar o Canal da Mancha, e lá ficou como uma nódoa, numa manhã de desespero…tudo isto, e muito, muito mais, é ou não é obsceno? Serão estas as últimas páginas do Apocalipse?
Mas há ainda outro motivo que eu também não sei entender: tentarem camuflar toda esta realidade com um palavrão que, para mim e neste contexto, é escandaloso – DEMOGRAFIA.
Não é crise de religião: essa, com muitos ou poucos fieis “religa” sempre. Poderá ser uma crise de fé, porque o homem perdeu a esperança. Já não acredita em nada. Nem sequer no sonho de poder ter filhos. Não há lugar, não há espaço para amar. E os povoadores (voluntários ou compulsivos) desapareceram há muito. É certo que a Europa deixou de ser “o velho continente” e talvez tenha passado a ser o continente dos velhos…A curva da natalidade tem vindo a descer acentuadamente, mas os motivos são muitos outros, que não caberiam aqui.
Ainda há um par de anos, por não haver trabalho no nosso país, os governantes aconselhavam os jovens a emigrar em busca de futuro. E agora? Teremos que importar máquinas de fazer filhos para termos crianças nacionais? Será? Claro que isto não é só assim. Terá que haver (há) para estas situações, meio por meio de soluções. Por formação, por humanismo, por sentimento e por racionalidade, sou pela abertura de todas as portas. A Terra “é a casa comum”, como diz o Papa Francisco. Mas já há muito que o poeta dizia: “Esta casa é minha e tua / O que é meu também é teu / Portas que dão para a rua / Fazem lembrar as do céu”.
Neste delicadíssimo problema da natalidade é imprescindível uma componente – O Amor. Dentro e fora do quarto, paredes meias com a justiça, a proteção, o amparo, o carinho, as condições de vida – O Trabalho. Esta é a chave do problema. Revolucionar e dar forma a novos métodos de produção. A inovação, quando inteligentemente concebida, sem a exploração do homem pelo homem, com os braços estendidos num abraço fraterno, “Et Pluribus Unum” (que não é só um lema de desporto, é de vida!) resultaria forçosamente frutífera.
Em 11 de julho de 1964, quando lhe foi entregue pela Sociedade Portuguesa de Escritores, o Grande Prémio de Poesia atribuído a Livro Sexto , Sophia de Mello pronunciou estas palavras: “Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão.
(…) não há nada que possa separar aqueles que estão unidos por uma fé e por uma esperança.”