Camiliana: um lançamento de arromba
Sobre Camilo Castelo Branco pensa-se que está praticamente tudo dito sobre a sua vida, que foi o mais prodigioso dos seus romances. Sampaio Bruno enalteceu dizendo que foi ele que implantou entre nós o romance de costumes e Cândido Figueiredo foi igualmente lapidar: “Este homem não é um literato, é uma literatura”. O Círculo de Leitores acometeu-se a mais uma empreitada magnífica para a cultura portuguesa: em quatro volumes, todos os contos, novelas curtas, romances breves, cartas e textos jornalísticos do genial Camilo Castelo Branco: “Camiliana, recolha prefácio e notas de José Viale Moutinho. Acaba de sair o primeiro dos quatro volumes. De leitura obrigatória. Para quem não conhece a sua vida, o editor compraz-nos com um esclarecimento que deixa antever a atmosfera romântica e realista da obra camiliana: “Filho ilegítimo que luta pelo título de visconde. Pai precoce, que assiste à loucura do filho e vive uma das mais intensas histórias de amor com uma mulher casada – o que o leva à fuga e à prisão. Camilo nasce em Lisboa no ano de 1825. A sua mãe morre cedo e só com quatro anos o pai o reconhece como filho legítimo. Passa parte da infância em Vila Real, com uma tia, mas casa aos 16 anos, mudando-se para Samardã. Dali foge por ter escrito versos ofensivos sobre uma das mais importantes famílias da Vila – algo que continuará a fazer toda a sua vida: a escrever como arma, a ter de fugir pela violência das represálias. Matricula-se no Liceu Nacional do Porto, reprova por faltas e volta a apaixonar-se. Para além dos artigos que escreve para jornais, publica as suas primeiras novelas. Decide depois abraçar a vida religiosa, mas subitamente parte para Gaia, e volta a apaixonar-se. Ana Plácido abandona o marido e vai viver com Camilo tornando-se a sua relação um dos grandes escândalos da sociedade de então. O casal chega a ser preso, mas Ana Plácido acaba por herdar a Quinta de São Miguel de Seide, onde passam a viver. Em 1890, face à cegueira, suicida-se. Deixa uma obra marcante para a nossa literatura, relembre-se alguns títulos: Amor de Perdição, Queda de um Anjo, Retrato de Ricardina, As Novelas do Minho”.
O investigador José Viale Moutinho é seguramente o estudioso melhor equipado para pôr de pé esta magnífica coleção que preenche uma incompreensível lacuna. Este volume põe nas mãos do leitor uma prosa dispersa com romances folhetins, onde não falta um romance de faca e alguidar, assiste-se ao registo do dramatismo romântico, que tornou Camilo tão popular e chama-se à atenção para o importante estudo prévio que Viale Moutinho faz do inacabado e polémico romance, A Infanta Capelista. Camilo, pelas contas de Alexandre Cabral, numa estimativa por alto, terá escrito algo como 60 mil páginas. Embeveceu gerações com dramas lancinantes, uma prosa cultíssima e castiça, cultivou a lírica, a sátira e a épica, por vezes tudo no mesmo folhetim, conto, novela ou romance. Os seus estudiosos, como observa Viale Moutinho, discutem se houve mesmo contos ou novelas curtas. O investigador lembra-nos o tempo de Camilo no contexto histórico em que ele se movimentou e fica bem claro que era um homem bem culturalmente sobredotado, ledor compulsivo e verbomaníaco, mas profundamente desinteressado das aventuras científicas, das expedições, das grandes conquistas da era industrial, o seu olhar perscrutante centrou-se em brasileiros, numa aristocracia rural onde se misturava a genealogia com a modéstia envergonhada, e angustiosos lances de amor, a descambar para fins funestos. São mais de 650 páginas com as primeiras obras. É quase sempre fulminante e mesmo pirotécnico no arranque dos seus escritos. Assim, em “Aventuras dum surdo”: “Não consinto que se calunie o Porto. Os praguentos, que nunca viram sociedade melhor do que esta, desdenham-lhe o viver prosaicamente monótono e enjoativo”. Sempre que pode, é sentencioso e moralista: “O amor inventou-o o estragamento dos bons costumes gregos e romanos, como coisa necessário e acirrante aos paladares botos dos filhos viciosos das cidades. Ainda agora nas aldeias, afastada dos focos da corrupção, coisa que eu nunca ouvi dizer é: ‘A Maria do Ribeiro ama o António da Capela’. Lá não se diz ‘ama’; é ‘querem-se’. Quererem-se é outra coisa; é amalgamarem-se num só ser, em uma só vontade, numa identidade de alma e corpo tal, e tão uma que nem sequer cogitam se há desgraça com força de desuni-la aquém da morte”. Camilo estudava a sério modos profissionais, caso da profissão de boticário, como é explícito em “Aventuras dum Boticário da Aldeia”: “O senhor Manuel Pires, farmacêutico aprovado por outro farmacêutico que não foi aprovado em parte nenhuma, estabeleceu a sua botica numa aldeia do concelho de Carrazedo de Montenegro. O seu laboratório químico era um fogareiro e uma retorta de vidro, emendada no colo por um cilindro de lata. A sua livraria era o Médico Lusitano, in-fólio; uma Farmacopeia, edição de 1700; e um pequeno volume intitulado – Segredos da Natureza. Os lotes, que eram seis, continham garrafões de barro vidrado, atapulhados de ervas, que tinham o merecimento cronológico de serem contemporâneas dos garrafões. Afora isto, não sei que líquidos verdes amarelos e azuis variegavam um dos lotes, que, pelos modos, continha os remédios heroicos, como óleos de amêndoas doces, estratos de amoras, solimão e óleo de mamona”. Se alguém duvida da vasta preparação de Viale Moutinho para este empreendimento camiliano leia o expressivo introito ao romance A Infanta Capelista, obra renegada de Camilo e que dá conta dos ziguezagues que atravessavam a alma. Vá-se por aí fora com toda esta prosódia que andava dispersa, e que dá uma festa ao leitor quando lê Tramoias desta Vida, A Flor da Maia, Três Médicos, assim se chega a um romance inconcluso, A Via-Sacra, que abre com tiro de canhão: “Envelhecera intempestivamente. Aos quarenta anos tinha cinzentos os cabelos. Aos cinquenta, firmava-se com dificuldade, tinha as oscilações da decrepitude, curvava-se trémulo. Nunca tivera as doenças que prostram sem matar de vez, e arrastam o valetudinário, muitos anos, à volta da sepultura. Amorteceram-no de desgostos, tristezas sem intermitência, o inapelável inferno, chamado ‘desesperança’. Era juiz de Direito em Elvas. Tinha cinco filhas e dois filhos, sem mãe”.
Livro imperdível, um grande acontecimento, à altura do intemporal génio de Camilo.