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Bombeiros II

Crónica publicada na edição 478, de 29 de setembro de 2023

A terra engolia tudo. No Inverno, era a chuva limpa e violenta, cada vez menos generosa, cada vez mais concentrada em poucos dias, a maior parte deles, sonoros de nuvens e trovoada. No Verão, como naquele em que eu e o Rui nos pusemos a caminho sem saber o que nos esperava, era a aridez descendo impiedosa do Sol que açoitava as ervas e os arbustos espinhosos e parecia beber a vida num trago. Havia cada vez mais culturas ao abandono. O mato, as balsas e as pedras descarnadas espalhadas pelo chão iam tomando conta de tudo. Aquele Verão, em particular, parece nunca mais ter acabado naquele lugar onde, mais cedo ou mais tarde, reinará para sempre a fealdade insultuosa das cinzas ou do betão. O grito dos regatos estava preso nas gargantas. Por isso, as pessoas procuravam reabilitar poços antigos, cavavam-lhe os fundos até que a água voltasse a espelhar o céu.

Só se ouvia os nossos passos estalando galhos na secura e o ralenti das cigarras. Ao longe, soavam vozes abafadas pela distância e o ladrar roufenho dos cães pisteiros. De resto, a paisagem, ainda que mais ou menos planáltica, era um grande muro de silêncio. O Rui, ganhando terreno a cada metro, parecia movido pela quinta força da Natureza. Seguia numa cadência apressada e constante, como se as leis da física, naquele lugar, mudassem à sua passagem, ansioso por encontrar uma pista que nos levasse àqueles pobres homens desaparecidos. Como sempre, queria apenas fazer o seu trabalho e regressar finalmente para casa, onde a mulher e o bebé o esperavam.

Naquele dia, não o conseguia acompanhar. O meu joelho voltara a dar sinal de si, obrigando-me a quase arrastar a perna direita para caminhar. Era como se tivesse um morto agarrado ao pé, travando a minha marcha, prendendo-me ao chão, que é o efeito que eles costumam ter em mim: mantêm-me com os pés bem assentes à vida, dão-me prudência, bom senso, astúcia, perseverança. A mão dos mortos guia-me. Quando coincidíamos os dois de serviço no quartel, eu e o Rui, e não se passava nada, não havia ocorrências e os carros e o chão e a vida estavam quietos e limpos, passava os tempos mortos a ler livros. Eram sobretudo romances americanos do princípio do século XX. O Rui aproveitava para fazer pequenos exercícios físicos que mantinham os músculos em alerta, dando uma ocupação ao volume incansável do seu corpo. Várias vezes, entrava pela porta da sala de convívio com um haltere subindo e descendo a um ritmo desencontrado em cada mão. Parava ao pé de mim, cheio de veias aos saltos, e dizia:

-Outra vez a falar com os mortos?!

-Estou a descansar um bocadinho – dizia-lhe, depois de levantar a cabeça e fechar o livro, deixando o indicador entalado na página onde me encontrava.

-O corpo humano não se fez para estar parado! O corpo humano fez-se para castigar com trabalho! – acrescentava, soprando depois um balão imaginário, enquanto exercitava os pesos nos punhos, ainda com mais vigor, até as veias na cabeça, inundadas de sangue, quase explodirem. Diante do meu espanto, o corpo dele não parava de crescer.

– Estás a olhar para onde? – concluía.

Depois, se a sirene nos chamava, dava-me uma belinha na cabeça e dizia:

-Vês como tenho razão? O corpo fez-se para castigar! Deixa os mortos em paz! Existimos para cuidar dos vivos!

O Rui, ganhando terreno a cada metro, parecia movido pela quinta força da Natureza. Seguia numa cadência apressada e constante, como se as leis da física, naquele lugar, mudassem à sua passagem, ansioso por encontrar uma pista que nos levasse àqueles pobres homens desaparecidos.

Em cada missão o Rui empenhava-se dando tudo quanto tinha. De Cabo a rabo, ia até ao limite das forças, sempre, sem medos, como D. Quixote de encontro aos moinhos, como se procurasse a glória no final do dia e só esse estado de êxtase e amor próprio lhe permitissem afirmar de forma inequívoca a importância de estar vivo. Não era bem fama que o Rui queria, mas a glória, a glória suprema e fulgurante de estar vivo e ser útil a essa milagrosa condição. Não queria ser uma ficção nem deixar dúvidas quanto à utilidade da sua existência. Sabia que se fosse ele a fazer a diferença, o seu nome seria falado muitas vezes entre nós, se o caso fosse sério, talvez aparecesse nos jornais ou nas televisões, o que apenas por uma vez aconteceu. Compreendo-o. Só quando chamam pelo nosso nome passamos a ser alguém. As vezes que o repetem dá a medida da nossa importância. Depois da última vez em que alguém diz o nosso nome, deixamos de existir.
Várias vezes lhe recomendei calma, ponderação, um pouco de respiração antes de mergulhar de cabeça nas inúmeras situações limite com que um homem se depara num trabalho de risco como o nosso.

-Sabes aquela história do fulano que está para se casar e pergunta ao mestre se deve ou não fazer e o mestre responde que, qualquer que seja a decisão, ele acabará por arrepender-se? – dizia, fanfarrão – prefiro arrepender-me daquilo fiz ao invés de arrepender-me do que podia ter feito. O que é, é! Certo ou errado, mas é, o que podia ter sido não é nada, é apenas cobardia. Seja como for, só não quero que as minhas decisões façam mal a alguém. Passa-se o mesmo com as minhas hesitações. Morro de medo de que o tempo perdido a pensar possa causar dano a terceiros. Ação é pensamento – concluía, num fugaz piscar de olho.

No meio de uma pequena clareira, mais ou menos circular, estava um poço, e, dentro dele, mais de metade do corpo do Rui, apoiado na escada por onde os outros quatro homens tinham descido antes.

“Ação é pensamento”. Meditava eu nisto a caminho do salvamento daqueles pobres homens desaparecidos, quando a voz do Rui, com quem, entretanto, já perdera o contacto visual, me situou.

– Hei, aqui!

Nestes dois gritos estava o par de coordenadas que faltava a todos os envolvidos na missão. Tinha sido o Rui a encontrar os malogrados. Antes da GNR, antes dos cães pisteiros, antes dos populares que se haviam juntado.

No meio de uma pequena clareira, mais ou menos circular, estava um poço, e, dentro dele, mais de metade do corpo do Rui, apoiado na escada por onde os outros quatro homens tinham descido antes. Só se lhe via a cabeça. Junto à boca do poço, um saco com farnel, dois garrafões de água e uma pá. Aproximei-me, cheio de dores no joelho, o pé direito a apagar o rasto do esquerdo na poeira. Era como se todos os meus mortos viessem comigo prolongados nos meus passos.

-Já chamei. Não dão sinal. Vou lá abaixo ver o que se passou! – disse, afogueado – Não há tempo a perder.

-Calma! Espera, pensa! Aguenta até que os miúdos cheguem com o equipamento de resgate.

-Ação é pensamento! Vai buscar ajuda. Diz-lhes que é aqui. Com sorte ainda consigo salvar algum. Vai! Baza!.

Debruçado, ainda o vi a descer para dentro daquela grande sombra, como se também ele fosse uma. A meio da descida, abriu muito os olhos, depois a boca e deixou-se cair para o fundo, engolido pelas trevas húmidas.

Desde esse dia, nunca mais regressei ao quartel. Quanto tempo terá passado desde que aconteceu? Ainda serei eu, aqui, neste corpo, por trás destas palavras sujas? E, no entanto, as sirenes tocam. Nunca deixaram de tocar. Ouço-as a doer no joelho, muito antes de me entrarem nos ouvidos, muito antes a inundarem as casas e as ruas. Chamam-me. Não vou. Ainda não saí do fundo daquele poço.

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