Biblioteca
Entrei numa biblioteca. Na consumação da acção de entrar no espaço não havia senão um não objectivo, mascarado de interesse.
Sentei-me, como se sentam os leitores, mas sem livro à minha frente, apenas um tampo quadrado, oitenta e cinco por oitenta e cinco centímetros, se não me falha a memória, de madeira clara sem verniz. Quantas árvores foram abatidas para garantir o vão prazer da leitura?
Por isso gosto de bibliotecas, só para me sentar e imaginar o que dirá Franz Kafka a Jorge Luís Borges de estante a estante. Ouço um grasnido, vai recrudescendo, até se tornar insuportável na minha nuca. Apenas um leitor como eu, com alguma limitação ou defeito vocal, ou a conjugação dos anteriores, ou talvez nenhuma das anteriores conjecturas. A capacidade de ler pode ser um defeito, que nos é concedido para assinalar a diferença ou a diversidade de ser, de sermos nós próprios. O grasnido poderá advir de uma dolorosa leitura do mundo, ou apenas a forma de comunicar essa estranheza, ou de uma beleza não catalogada. E se fôssemos pássaros de estanteria? Seres canoros sem voar.
Imagino os escritores assim, com capacidades vocais encantatórias ou talvez capazes de simples grasnidos, como os do leitor a meu lado.
Levanto-me, arrumo a cadeira, olho em redor e apreendo o espaço da sala de leitura, a ordem alfabética, a catalogação dos livros, da vida toda, e sigo indiferente a tudo isso. Indifere-me a catalogação. O que me ficou foi o grasnido de ave canora de um meu semelhante. Tornou-me mais autêntico, aquela expressão primordial, uma obra assinalável para sala, cadeiras, mesas e voz projectada.
O autor não existe, é uma projecção de grasnidos primordiais, em erro de paralaxe, ou reflexo de representações em desfocagem, toda a escrita é um não lugar para ser lido em razão da sua inexistência.