As Alcarias de Monchique
A Alcaria (do árabe al-qariya = «povoação, aldeia»), designava, no mundo muçulmano do al-Ândalus, as pequenas povoações rurais que se situavam nas imediações das grandes cidades (as medinas), apresentando-se, de alguma forma, como a continuação das antigas villae romanas.
Uma alcaria podia ser um povoado único, fortificado ou não, ou ainda um aglomerado de pequenas povoações que possuíam em conjunto um perímetro fortificado, onde se podia guardar o gado em caso de perigo.
O primeiro tipo de alcaria única existia sobretudo no Alto Alentejo. O segundo tipo de alcarias, com pequenos povoados associados, predominava no Baixo Alentejo e Algarve.
O termo alcaria está na base de diversos topónimos, hoje dispersos pelo sul do país, de que conhecemos uma freguesia desse nome no Fundão, uma outra em Porto de Mós, ou ainda nos compósitos Alcaria Ruiva, em Mértola, ou Alcaria da Serra, na Vidigueira, e ainda alguns outros, que poderão ser detectados na internet.
A Alcaria dos Javazes, situada no concelho de Mértola, no Baixo Alentejo, próximo da Ribeira do Vascão, fronteira administrativa entre o Alentejo e o Algarve, terá sido o “refúgio” de Ibn Qasi, emir de Mértola no século XII.
Nas alcarias e arredores havia os morabitos como locais de culto a homens santos e ermitões, cujos exemplos ainda hoje perduram, nomeadamente em Monchique, sobretudo na actual ermida de S. Sebastião.
Mais recentemente, estes aglomerados populacionais isolados passaram para o período mudéjar dos moçárabes e destes para as primeiras populações cristãs. Tinham uma certa autonomia, pelo menos do ponto de vista eclesiástico, e eram geridas por uma assembleia de anciães: a aljama.
Com o tempo, aí pelos séculos XIV-XV, as alcarias eram visitadas pelos juízes pedâneos eleitos pelas Câmaras Municipais, que por serem os mais ínfimos destes magistrados andavam a pé e julgavam de pé.
Hoje torna-se difícil identificar muitas destas alcarias, já que com o tempo o topónimo se alterou e as aldeias transformaram-se ou simplesmente desapareceram.
Além disso, nalgumas zonas do país o topónimo passou a designar uma casa campestre para guardar instrumentos de lavoura, ou até uma casa de habitação senhorial situada no campo.
Frei João de S. José, na sua Corografia do Reino do Algarve, de 1577, coloca as “Alcarias” entre os lugares e freguesias menos importantes do Reino do Algarve, mas que nesse tempo ainda eram abundantes.
Também na obra de Luiz Cardoso, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de todas as cidades, villas, lugares…, de 1747, que menciona as Alcarias do Algarve (mas não as de Monchique), estas eram ainda muito abundantes, existindo em Faro (Alcaria Branca e Alcaria Cova), Tavira (Alcaria Fria e Alcarias Covas), Alcoutim (Alcaria Alta, Alcaria Queimada e Alcaria do Velho), Lagos (Alcarias), Castro Marim (Alcarias), Odeleite, Boliqueime, Giões, Cachopo (Alcaria Alta), Querença (Alcaria do Gato) e Vaqueiros.
Segundo Helena Catarino, o Castelo de Salir terá sido uma importante alcaria do iqlim de Loulé (Al-Uliã).
O historiador A. H. de Oliveira Marques, diz que o número subsistente de alcarias (al-qarya), que com as aldeias (day’a), constituíam unidades básicas do povoamento rural no período muçulmano, atinge os valores mais elevados nos actuais distritos de Faro (= 39) e Beja (= 35), distribuindo-se por quase todos os concelhos do Algarve e por mais de metade do Baixo Alentejo. A diferença entre a aldeia e a alcaria é que esta última, como atrás se disse, tinha uma certa autonomia, sobretudo do ponto de vista eclesiástico e era gerida por uma assembleia de anciães, a aljama.
No Algarve, o topónimo “Alcaria” encontra-se ainda hoje em quase todos os 16 concelhos, apesar de nenhuma destas localidades ser freguesia: Monchique, Portimão (Alcaria de Arje), Silves, Aljezur, Loulé, Faro, Tavira (Alcaria do Cume), Alcoutim (Alcaria Queimada), Castro Marim, etc.
As Alcarias na área do actual Concelho de Monchique
Entre os topónimos presentes na área do actual concelho de Monchique e que ficaram de tempos passados, estão ainda hoje a Alcaria do Peso e a Alcaria do Banho.
A primeira situa-se a cerca de três quilómetros da sede de freguesia e concelho; e a segunda nas Caldas de Monchique, podendo ter tido início com os primeiros habitantes berberes e árabes que aqui se fixaram, talvez com o intuito de explorarem e utilizarem a água termal, como os romanos já o tinham feito, mas também os recursos mineiros, cinegéticos e florestais.
Tirando estes vestígios pouco mais ficou da presença muçulmana (árabe, berbere e não só) na serra de Monchique, de que recordaremos também a casa de uma água, os vestígios de atalaias e fortificações, os indícios de morabitos, os engenhos movidos a água, os muitos topónimos, a gastronomia e a tradição oral.
O sítio ou sítios da Alcaria estão presentes nos assentos paroquiais desde o século XVII, quando estes tiveram início. Em 20 de Junho de 1647 moravam na “Alcaria” Amador Luís e Joana Rodrigues, que nesta data baptizaram o seu filho António, sendo padrinhos Vicente Dias, solteiro, filho de outro do mesmo nome morador nos Casais, e Joana Beltroa, filha do capitão das Ordenanças militares Fernão Duarte Beltrão.
A proximidade com o Banho podia levar a crer que esta Alcaria fosse a das Caldas de Monchique, mas também podia indicar que havia uma outra nas proximidades de Casais.
Também houve em tempos a denominação “Alceria”, encontrada no século XVII, que podia ser um corruptela, ou não, de Alcaria.
Pelo censo de 1911, a Alcaria do Peso (a única que consta), tinha 44 habitantes, distribuídos por 11 fogos.
Américo Costa, no seu Dicionário Geográfico de Portugal Continental e Insular (1934) insere as localidades de Alcaria e a Alcaria do Banho.r
Notas:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Alcaria (adaptado).
A.H. de Oliveira Marques, “O «Portugal» Islâmico”, in Nova História de Portugal, II, “Portugal das Invasões Germânicas à “Reconquista”, pp.151, 154, 188-189 e 207.
Frei João de S. José, Corografia do Reino do Algarve, in Duas Descrições do Algarve do Séc. XVI, p.59.
Helena Catarino, O Algarve oriental durante a ocupação islâmica: povoamento rural e recintos fortificados, Coimbra, 1997.
João Baptista da Silva Lopes, Corografia do Reino do Algarve (…), 1841.
José António Guerreiro Gascon, Subsídios para a Monografia de Monchique, p.316.
Lívio da Costa Guedes, Aspectos do Reino do Algarve nos Séculos XVI e XVII: A «Descripção» de Alexandre de Massaii (1621), p.96.
Luís Cardoso, Diccionario Geografico ou Noticia Historica de todas as cidades, villas, lugares…dos Reynos de Portugal e Algarve…, Tomo I, Lisboa, 1747, p.276-277.
TT, Baptismos, Monchique, 1618-1681 (1647), p.96.
José Rosa Sampaio, Os Antigos Juízes das Povoações de Monchique: Pedâneos, Vintenários e Ordinários (Séculos XVII-XIX), 2017.
– Apontamento Histórico e Síntese da Gastronomia Tradicional do Concelho de Monchique, 2.ª ed., 2016.
– Um Percurso pela Toponímia do Concelho de Monchique, 2015.
– De Morabitos a Ermidas: Antigos Espaços de Culto e Afirmação de Poder das Oligarquias do Algarve. O Caso de Monchique, 2017.
– As Antigas Atalaias, Almenaras, Fachos ou Torres de Vigia do Reino do Algarve, 2018.
– Caldas de Monchique: Estância Hidro-Medicinal desde a Antiguidade e Precursora do Turismo Algarvio (a editar).