Apostura literária de um terso médico de Canelas do Douro

O contista é um autor forçado a um trilho muito estreito, com diferentes precipícios à espreita: conto não é novela curta ou romance em miniatura, ocupa pouco espaço e não pode ser fogo-fátuo, tem que cavar recordação, é seco em palavras e pirotécnico na imaginação. Em boa hora se retoma a publicação da obra de um dos maiores contistas portugueses, João de Araújo Correia, desta feita já estão nos escaparates os seus espantosos Contos Durienses, publicados pela Âncora Editora, alguns dos quais são peças obrigatórias da mais exigente das antologias do conto português.

Nascido em Canelas do Douro, no final do século XIX, foi médico e fixou-se na Régua, era pois médico a tempo inteiro e desdobrou-se na escrita, mas foi no conto que se tornou em escritor ímpar. Dele se diz que praticou a melhor prosa regionalista e castiça, que cuidou do realismo e da realidade telúrica sem quaisquer preconceitos, mas tais nomeações são limitativas do seu génio estuante, ficará na história da literatura como inclassificável, apesar da sua atração pelo castiço. É no conto enxuto, de escassas páginas, que ganhou a posteridade, são águas-fortes, com cheiros, panoramas, perfis, tensões interiores, lições morais, quase de caráter bíblico.

Poucos como ele souberam dar um pontapé de saída nessa nesga de prosa que é o território do conto. A Última Fidalga não dá tréguas e cinzela o mundo rural em que tudo se vai inscrever: “Não havia estradas para aquela aldeia. Subia-se até lá por caminhos tão empinados e tão pedregosos, que pareciam escaleiras de alvenaria encostadas à montanha. Quem tivesse fôlego ia a pé. Quem não o tivesse alugava ou pedia emprestado um burrico a um dos moleiros que espadanam cá em baixo, no vale, a magra água do Serpejo. O burro, mais fino do que nós, subia a encosta, descrevendo uma cómoda linha sinuosa. Nunca imitaria um cristão, subindo a festo”. Aqui se versa a vida de uma fidalga que se divertiu à grande e à francesa, a sentença moral fica para o fim, deixou os parentes ávidos pelas partilhas, teve um enterro de arromba: “Depois de morta, a Prima Pulquéria, vestida de branco, mantinha o ar de rainha sorridente que tivera em vida. O enterro foi uma apoteose de mil aldeias e cem vilas àquela que tudo dava com um sorriso nos lábios um tudo-nada irónicos. Acompanharam-lhe o caixão ao cemitério todos os compadres e todos os mendigos. As músicas degladiavam-se na ânsia de serem cada qual o mais fúnebre. Um cavador erguia nos punhos de ferro uma bandeira negra. Os bombeiros choravam. Fechava o cortejo uma cavalgada de ciganos com as faces pálidas molhadas”.

A paleta de carateres é surpreendente, atravessam-se ciumentos, luxuriosos, bisonhos, penitentes, eternas viúvas, brasileiros de torna-viagem, ricos e pobres, e doentes, seguramente que ele observou e que o marcaram. A natureza, nas mãos deste escritor, é redescoberta, ele sabe ir ao avesso das coisas, ao que nos escapa pela incomodidade a que está ligado: “Naquele cemitério, há plantas que em parte alguma se veem. Nascem espontâneas de um chão gordo e afogam com os caules maleáveis e as folhas multicolores todas as sepulturas. Há as humildes como violetas que nem pelo cheiro se denunciassem. Há as soberbas de cor, olor e feitio. Uma delas vi eu, toda vermelha, mosqueada de branco, agarrar-se à figura da morte, que encimava a campa, como se a quisesse matar. Era o mausoléu do ambicioso político”.

Tenho para mim que o grande escritor se alanceou a contos mais compridos onde, manifestamente não foi feliz ao escapar às regras de ouro da concisão e cedendo à lamechice de cariz romântico, caso do conto O Escritor que salta à vista desarmada que se devia ter estruturado como uma novela, e que ele escreveu de cambulhada, com um final à Camilo Castelo Branco, coisa que não era do seu género.

João de Araújo Correia é igualmente prodigioso quando a água-forte traz lição de parábola, neste caso o pobre que acoimava os ricos, que depois os imitou até ao desvario, e acabou pobrete no fim do círculo. Mas o arranque do conto O Pouca-Roupa é esplêndido: “Não podia ver os ricos. Na impossibilidade de os desfeitear à luz do Sol corria-os à pedra de noite quando saíam de casa uns dos outros no fim dos serões. Outras vezes estilhaçava-lhes os vidros das janelas e os beirais dos telhados, quando os apanhava dormidos nas camas de sumaúma. Não os podia ver… Trazia sempre um rico nos gorgomilos. Cuspia no chão à passagem dos ricos e não se descobria diante deles, consoante manda um pobre a boa educação na aldeia”.

Uma época em que a arte do conto tem poucos oficiantes de gabarito, é bom que se releia este grande mestre que conhecia a fundo a medicina das almas e possuía um enorme enlevo por um mundo muito mais dilatado que o seu Alto Douro, tão amado.

 

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