António Ferro, o incansável propagandista do Estado Novo
“António Ferro, Um Homem por Amar”, por Rita Ferro, Publicações Dom Quixote, 2016, é uma elegia de uma das figuras mais polémicas do Estado Novo, personalidade multifacetada, que ainda hoje alimenta paixões. A autora chama-lhe romance, coisa que não é, a despeito de o arranque da narrativa poder como tal ser tomado: as origens familiares, a vida na rua da madalena, a juventude. A elegia terna surge cedo, cria-se a ficção de que António Ferro frequenta a Quinta de Camarate onde vive Mário de Sá Carneiro, travam conversas impensáveis par dois adolescentes, com a agravante de o uso da comunicação estar marcado por linguagem contemporânea. Depois a rotação da escrita começa a seguir as folhas do calendário e António Ferro ganha uma dimensão de carne e osso, surge nas tertúlias de Lisboa, convive com os modernistas, abandona os estudos universitários e torna-se um jornalista com notoriedade. Em breve, será alçapremado a dirigente da propaganda de Salazar, ganhou a confiança do ditador depois de lhe ter feito uma série de entrevistas.
O grande agitador cultural entra em cena, a ideologia do nacionalismo português mostra os seus dons de mago, a sua obra salta à vista: ranchos folclóricos, o Bailado Verde Gaio, as exposições da arte moderna, os cortejos históricos, a revista Panorama, as pousadas de Portugal, os prémios literários e artísticos, rodeia-se de dezenas de criadores como Almada Negreiros, Paulo Ferreira, Ofélia Marques, Bernardo Marques, Tom, Leitão de Barros, Raúl Lino, está atento à ascensão de Amália Rodrigues ou aos talentos de Manoel de Oliveira. Traz um bom lastro de preparação, conhece o cinema e o jazz, fez poesia, escreveu para o teatro, foi conferencista infrene. É uma elegia acalorada, cruzam-se tempos, inventa-se a ourivesaria de Viana, surge uma conversa impossível entre pai e filho em até se fala de Ivan Illich, uma extemporaneidade que até fica bem. Rita Ferro trata veladamente e com pinças a relação de António Ferro com Fernanda de Castro, duas personalidades com oposições caracterológicas mas com grande harmonia na discrição dos afetos comuns. Mas haverá arroubos afetivos espúrios, serão tratados com bastante delicadeza por Rita Ferro.
Levará 17 anos à frente do Secretariado da Propaganda Nacional. Os colaboradores diretos, no Palácio Foz, não terão sido grandes espingardas. E Rita Ferro faz do avô um hércules: “Foi aqui, neste gabinete, que organizei as Exposições de Arte Moderna, a Exposição do Mundo Português e as participações nacionais em grandes Feiras Internacionais; como foi aqui, que orientei as dezenas de publicações, de primorosa qualidade e capas originais, que têm divulgado, durante todos estes anos, as atividades deste organismo”.
Finda a II Guerra Mundial, a ideia de propaganda é pura e simplesmente associada à ideologia nazi-fascista, Salazar imprime retoques ao regime e a pretexto dos anos de labor, envia António Ferro para a Legação em Berna. Para Rita Ferro, Salazar dera ao seu homem de propaganda inteira liberdade para a sua ação cultural e fomento ideológico nacionalista, mesmo não gostando de arte moderna nem de projetos culturais dispendiosos. Considerava-o um homem peculiar, extravagante: “Aquela condição de ser metade artista, metade executivo, metade vaidoso, metade humilde, e tudo isto com uma permanente flutuação de humores”. Ferro teria preferido ir para Paris, ainda o epicentro do mundo cultural europeu, Ferro jamais se adaptará aquele país de joalheiros, ficará melancólico, ainda que cumprindo cabalmente o trabalho diplomático. Se ia para longe da vida frenética para trabalhar na sua obra literária, pouco ou nada acontece, só por manobra ilusionista, e correndo risco do ridículo é que se pode dizer que António Ferro deixou uma obra literária marcante, Rita Ferro é esforçada nos encómios e exaltadora da sua criatividade, que hoje ninguém lê.
De Berna será transferido para Roma, mantém saudades dos seus tempos áureos da propaganda nacional, adoece e vai morrer a Lisboa. Os amigos e protegidos foram-se gradualmente afastando quando deixou o Palácio Foz. Alguns dos seus devedores incondicionais, como o pintor Carlos Botelho, execrou-o depois do 25 de Abril. Nada de novo nos termos da gratidão.
Rita Ferro apensa correspondência inédita e publicada, alguma dela, como as cartas a Salazar a partir de Berna e Roma, merecem ser revistas, Ferro era diplomata à força mas sabia informar o ditador, tinha uma boa capacidade de observação. “Um Homem por Amar”? Questão equívoca, a despeito de ser bem-humorado, carinhoso, imprevisível, um autêntico animal ciclotímico, amado no seu círculo restrito, a própria correspondência o denota, foi maltratado em vida até por artistas, basta reler a carta de Eduardo Malta a Salazar.
Uma neta que é escritora concorre com uma elegia interessante para iluminar esse apoteótico palco onde António Ferro engenhosamente movimentou os cordéis, hábil títere.