CulturaDar o nome ao português

Almeida

“Se lhe pedirem para ser varredor de ruas, varra as ruas como Miguel Ângelo pintava, como Beethoven compunha ou como Shakespeare escrevia.”
(Martin Luther King)

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Com a abertura das avenidas novas e a edificação do arco monumental que do Terreiro do Paço abre acesso à rua Augusta, em finais do século XIX terminou a reconstrução da cidade de Lisboa, destruída pelo terramoto de 1755, expondo ao mundo moderno um novo conceito urbanístico a que o peso da engenharia militar não foi alheio1; revelando-se como símbolo da racionalidade da nova arquitetura portuguesa2, que valorizava a simplicidade e a eficácia, apresentará igualmente soluções técnicas bastante eficazes: ruas largas e arejadas, pavimentadas e dotadas de passeios para facilitar a circulação, amplas praças e frondosos jardins, o famoso “Passeio Público” (actual Avenida da Liberdade), bem como edifícios de linhas sóbrias, com não mais que três andares acima do rés-do-chão, fachadas idênticas e janelas largas de guilhotina, cozinhas equipadas com pia de vazamentos e devidamente providos de um sistema de esgotos, inovação que evitava o célebre “Água vai”, que tantos dissabores causava a quem ousasse deslocar-se a pé a certas horas, para gáudio dos mirones e fúria dos atingidos. O Aqueduto das Águas Livres, que resistiu incólume ao violento sismo, foi sendo progressivamente reforçado e aumentado ao longo do século XIX e veio colmatar uma grave deficiência nas infraestruturas de Lisboa, que era o aprovisionamento de água potável, proporcionando ao mesmo tempo melhores meios de combate à insalubridade endémica em que viviam os numerosos habitantes da cidade. No que se refere à limpeza dos espaços públicos, o Marquês de Pombal decidira concentrá-la, juntamente com a iluminação e a guarda a cavalo numa única instituição – a Intendência da Polícia. Os serventuários da limpeza (varredores e carroceiros) percorriam a capital de lés-a-lés, varrendo as ruas durante a noite e retirando tanto os lixos das habitações como o estrume das cavalariças, que depois era conduzido ao Vazadouro3 “… por meio de carroças numeradas e puxadas a muares, que através do toque da campainha anunciavam aos moradores a passagem dos carretões.”4 Contudo, apesar de todos os melhoramentos, no final do século XIX “Lisboa era ainda uma cidade suja, desordenada e malcheirosa. Encantava pela sua beleza e pitoresco, mas decepcionava pelo aspecto caótico das suas ruas e o atraso em que vivia a população. As ruas estreitas e tortuosas dos bairros populares (os “pátios”) para onde se lançavam detritos de toda a espécie, formando autênticas lixeiras, apresentavam-se esburacadas, com poças de água suja…”5. Urgia, portanto, que a bem da higiene e da saúde pública se tomassem rápidas providências. Entretanto, as condições de vida do mundo rural, no que tocava aos camponeses, continuavam a ser de magra subsistência: a esmagadora maioria, incluindo mulheres e crianças, eram assalariados sujeitos ao trabalho escravo, de sol a sol, nas herdades de burgueses e nobres, pagos a baixos soldos, mal alimentados, mal vestidos e sujeitos aos maus tratos dos proprietários e das autoridades locais, sempre conluiadas com o Poder. Era uma vida dura e difícil. Estavam assim criadas as condições para o êxodo rural: a deslocação maciça de grande número desses miseráveis rumo ao litoral urbano do país, na legítima procura de uma vida melhor. Foi neste contexto que, quando Fontes Pereira de Melo, a braços com falta de mão-de-obra para a Edilidade de Lisboa, se lembrou de requisitar força de trabalho não-especializada junto dos inúmeros desempregados recém-chegados à capital, um grupo de homens originários de Almeida, concelho da Guarda, acorreu a agarrar a oportunidade. A disciplina que a si próprios se impunham, o zelo e a dedicação com que desempenhavam as suas tarefas na limpeza das ruas, aliados a uma permanente boa-disposição que a todos encantava, chamaram a atenção e foram tão do agrado das autoridades municipais que, em breve, o emprego de varredor municipal passou a constituir um nicho dominado pelos almeidenses e os alfacinhas adoptaram a naturalidade dos briosos trabalhadores da vassoura como sinónimo de varredor de ruas, chamando-lhes almeidas. E o termo “pegou” até aos dias de hoje, apesar de há muito a corporação do útil e necessário ofício apenas esporadicamente contar com algum almeidense nas suas fileiras. Uma outra explicação para o surgimento desta palavra, refere que um aguerrido descendente de Egas Moniz, D. Paio Guterres Amado, fidalgo da casa do senhor D. Sancho I, rei de Portugal, portou-se com tanta bravura na conquista de Almeida aos Mouros (1190), que o monarca lhe conferiu o título de Senhor do Castelo de Almeida e o direito de usar o topónimo em sobrenome. Homem de impressionante estatura e robustez, que os seus contemporâneos alcunharam Almeidão, era muito respeitado na corte por ter “varrido os mouros”. Mas, como naqueles tempos não existia um serviço municipal de limpeza6 e porque, por regra, quem varre gente não varre calçadas, há, decerto, de ser anedota…

 

Citação:

  1. E quando o pai lhe pergunta qual é, afinal, a sua profissão em Itália, Omar é sincero. “Pai! Sou almeida! Trabalho com o lixo!”; Victor Bandarra; “O almeida da Mauritânia” in Opinião, Correio da Manhã.
  2. “Não tem a cara lavada
    Quem vive desta sujeira
    Que é ver gente governada assim,
    Por outra viver da lixeira
    E ser almeida, sem mais nada.”
    Carlos FAUSTO Bordalo Dias Gomes – tema “O Varredor” do disco “Madrugada dos Trapeiros”; 1977.

Notas:
1 Os três primeiros responsáveis pela reconstrução eram distintos oficiais do exército português: o general engº Manuel da Maia; o capitão de engenharia arqº Eugénio dos Santos de Carvalho e o major arqº Carlos Mardel. O traçado da Baixa lisboeta (dita pombalina) reconstruida lembra, pela forma geométrica das quadras entre a praça de D. José I (Terreiro do Paço) e o Rossio, um imenso aquartelamento militar.
2 Vila Real de Santo António, também ela arrasada pelo sismo de 1755, foi reconstruída no mesmo estilo.
3 Lixeira municipal que, à época, se situava junto à margem do rio Tejo, onde hoje é a avenida 24 de Julho.
4 Cf. Júlio de Castilho in “Lisboa Antiga”, 1835.
5 Cf. os registos da Exposição “O Povo de Lisboa”; organização da Câmara Municipal de Lisboa, 1978, citado por Pedro Almeida Vieira in “Resíduos: uma Oportunidade – Portugal no caminho da sustentabilidade.
6 O primeiro serviço regular de colecta de lixo e de limpeza de vias públicas, na Europa, ocorreu no ano de 1340, em Praga. Em Paris, esse serviço inicia-se no final do século XIV e em Londres apenas a partir de 1666.

 

(Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico)

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