Adeus, Camilo, regressa depressa
O projeto da Camiliana que envolveu o Círculo de Leitores e José Viale Moutinho foi um dos acontecimentos culturais marcantes dos dois últimos anos. A obra de Camilo Castelo Branco espraia-se por, pelo menos, 30 mil páginas, sendo que um número apreciável delas não faz parte dos mais procurados romances, livros de contos e novelas. Camilo foi prolífico em todas as suas dimensões, sempre a roçar a genialidade na epistolografia, na polémica, nos seus avassaladores escritos românticos. José Viale Moutinho é hoje o sumo-sacerdote da investigação camiliana, a ele se deve, com o comprazimento do Círculo de Leitores, a organização de quatro volumes com textos dispersos, foi uma ciclópica recolha de esparsos que mostram um Camilo praticamente desconhecido dos não iniciados, e onde há páginas magistrais, impossíveis de manter no olvido. Este quarto volume recolhe crónicas, textos polémicos e uma seleção de artigos, edição do Círculo de Leitores, Fevereiro de 2017. Lê-se este acervo disperso com o travo amargo de que há aqui gemas literárias e ficamos a interrogar quanto mais há de Camilo que devia merecer a continuidade da organização da sua escrita e a sua divulgação, ele merece essa atenção por que é um dos fulgores na nossa língua pátria.
Temos aqui um Camilo sátiro, trauliteiro, de pena acerada, escrevendo peças avulsas em jornais de Vila Real ou no Porto, divulgador histórico, embrenhado já na fatiota de visconde de Correia Botelho, muitas vezes movendo-se com pseudónimos, cada um deles mais engraçado que o outro.
Momentos há em que um pequeníssimo trecho revela a sua capacidade de síntese, sem rival. Vejamos “Os Dois Retratos” que apareceu em Braga, em 1887:
“O retrato que me fizeram há trinta anos, ao lado do que ontem me fizeram aos sessenta anos. Estão espantados um do outro. O do velho diz ao do rapaz:
– Eu já fui isso que tu és.
O do rapaz diz ao do velho:
– Bem sei. Estou aqui para te punir pela vanglória com que então te retrataste nesta postura soberba de força, de saúde, com um sobrecelho petulante. Contempla-me, velho; e, se não és tão miserável que chores, lê A Velhice de Cícero, e verás que a Providência Divina até nas margens da sepultura faz vicejar as flores. Tens sobre mim grande vantagem. Eu tinha que tragar o cálice de trinta anos de desgraças. Tu cumpriste a sentença, e vais enfim descansar”.
É verrinoso e brutal, um descasca-pessegueiro quase com a faca na liga. É assim que se dirige ao Sr. Tomás Filho, consta de O Cancioneiro Alegre, 1878: “Tomás filho! Começa logo por mentir no apelido. Filho! Quer me parecer que ele não tem pai e, se o teve anónimo e hipotético, Gil Vicente, António Prestes e Jorge Ferreira de Vasconcelos são quem amiúde lhe dizem o nome da mãe.
Este brasileiro, em nome dos escritores brasileiros que eu não ofendi, cheio de Fagundes e de cóleras de bêbedo turbulento, envia-me as suas melhores injúrias, chasqueando com a inexorável enfermidade que me acompanha desde a juventude, e vai às enfermarias dos hospitais buscar termos demonstrativos da minha incapacidade literária. Eis a crítica de Tomás Filho.
Diz, com tal qual razão, que eu não tenho estilo, porque não sou criador, ousa afirmar, contra a opinião geral da Europa, que eu não inventei a língua portuguesa. E manda-me estudar. Diz que trato a todos de burros, e evade-se sagazmente àquele pensamento universal atirando-me coices às parelhas. Depois, para me ensinar a escrever, exibe uns pedaços de estilo, com ideias brancas em locuções de preto babujadas de açúcar e mamona”.
Este volume da Camiliana é feito de crónicas, percorre uma boa parte do país, tem escritos sobre Velásquez e Ticiano, fala-nos do infante D. Duarte, irmão de D. João IV, que morreu encarcerado por ódio espanhol e do José do Telhado e de Guilherme Tell, temos em todo o comprimento as cartas de José Mendes Enxúdia ao Padre Serapião de Algures, é uma tripa-forra de intimidades com o senhor de S. Miguel de Seide, aqui tudo é possível, maior caleidoscópio não podia acontecer. Ora vejam:
“Estava uma linda Eusébia, posta em sossego, na gelosia, segredando amores ao dulcíssimo amor dos seus encantos.
Era meia-noite, a Lua baloiçava-se entre nuvens, a brisa soprava tépida, e as patrulhas ressonavam encostadas à porta do cidadão.
O ajoujado amante, com a cara em posição horizontal, e o nariz abandonado aos caprichos da viração, bebia sôfregas as cataratas do amorudo favo que a menina espremia nos lábios nacarinos.
Eis senão quando, à luz sinistra do gás, a alvoraçada jovem enxerga o pai, cuja rabugem contra o amor da filha andava fomentando paternais carolos, na pessoa do amante pertinaz”.
Camilo, quando quer, é moralista e sentenciador. Escreve assim numa crónica: “O casamento, no princípio do mundo era instinto-animal. Com a civilização, foi amor. Com o cristianismo, divino lapidário da civilização pagã, foi sacramento. Com a reação pagã, foi contrato. Agora é rapto, é violência, é assalto ao dinheiro de um pai, que tem em cada filha uma porta por onde lhe escalam a burra”. Quando lhe dá para desdenhar e pôr a ridículo, ninguém lhe pode competir na impiedade.
“O Sr. Augusto Soromenho, delegado, em Madrid, da Academia Real das Ciências de Lisboa, escreve folhetins no Jornal do Porto nas horas vagas da sua laboriosa tarefa de investigadores de códices latinos e árabes, cartulários, privilégios, doações, crónicas e cronicões como S. S.ª nos conta no número 204 daquele interessante jornal.
O Sr. Augusto Soromenho, na qualidade de intérprete de códices latinos e árabes, deve de ter todas as suas horas vagas para escrever folhetins, por uma razão singela e inocente: o Sr. Soromenho não sabe latim nem árabe.
Porém, como quer que o Sr. Soromenho, sem prévio exame de alguma das línguas, em liceu conhecido, dissesse que sabia latim árabe, a Academia Real das Ciências prestacionou o seu delegado nos cartórios de Espanha com cinquenta mil réis mensais.
Deve-se ao Sr. Alexandre Herculano esta nomeação. Foi uma esmola indireta que S. Ex.ª quis fazer a um moço necessitado”.
Sei muito bem que José Viale Moutinho não será agraciado por tantíssimo trabalho em prol da cultura portuguesa, foi ditado que Camilo não é primeiríssima necessidade na aprendizagem da língua portuguesa, com os resultados à vista.
Mas é bom que ainda alguém se abalance a empreitadas como esta Camiliana que avulta um génio das escrita disperso por folhas e folhetins com que ganhava a vida, pondo-a em romance, como mais ninguém o fez.