Acordar morto
Crónica publicada na edição 476, de 28 de julho de 2023
O avô acordou morto. Na noite anterior, como em todas as noites, jantou, sentou-se em frente à televisão, refastelado no cadeirão de couro seco, gasto, cheio das cicatrizes infligidas pela magreza do seu peso, viu a meteorologia e disse que não com a cabeça, viu a primeira parte da telenovela brasileira e deixou que o intervalo chegasse, já depois da trovoada que lhe saía da boca escancarada. Como sempre, despertou sobressaltado com um dos seus próprios roncos. Disse “por hoje, tem avonde, vou mergulhar”, o que era um costume seu dizer na hora de ir dormir. Levantou-se com o esqueleto a ranger por todos os lados e desapareceu na penumbra do quarto sem olhar para ninguém.
Muito embora o meu avô repetisse a toda a hora que tinha carta de chamada e que a vida era um curto interlúdio entre o não ser e o deixar de ser, nada fazia prever que acabasse como acabou, quando, a meio da manhã a minha mãe chamou por ele e ele não respondeu, quando a minha mãe voltou a chamar e só silêncio, quando eu, mandado pela preocupação da minha mãe, entrei no quarto e, de repente, à minha volta, um frio tão vago, elétrico, ligado a mim por arrepios, quando, cheio de medo, subi a persiana e vi a luz do Sol cair sobre aquela lividez tão rígida sob o lençol, os olhos do meu avô abertos, inanimados, sem brilho, procurando um céu que, para ele, nunca passou de um infinito de azul, de estrelas e de nuvens e nada mais. Dizia-me, apontando:
– O céu é grande, mas os deuses são demasiado pequenos para caberem ali!
Foi o meu avô quem me ensinou a nadar na barragem em frente a nossa casa. Pescávamos ali. Como não tenho irmãos e há muito que deixámos de ter vizinhos, brincávamos os dois. Nessa altura, ainda chovia durante todo o Inverno. A duração contínua dos aguaceiros ainda fazia parte da duração dos dias, das semanas e, não raras vezes, dos meses. A barragem enchia até obrigar as comportas, lá em baixo, no paredão cinzento e feio, a abrirem. Rente à superfície, em toda a extensão do vale, formava-se um nevoeiro espesso que se insinuava pelo ar e nos molhava o cabelo em gotas minúsculas, do tamanho de lêndeas, obrigando a minha mãe a colocar um lenço na cabeça e a fechar as janelas de casa durante dias, mesmo depois de passarem as chuvadas, para que as paredes de casa não ficassem doentes de humidade e de mofo.
“Muito embora o meu avô repetisse a toda a hora que tinha carta de chamada e que a vida era um curto interlúdio entre o não ser e o deixar de ser, nada fazia prever que acabasse como acabou, quando, a meio da manhã a minha mãe chamou por ele e ele não respondeu (…)”
A água estava logo ali. De casa, descia-se por um pomar que já não existe, assassinado por anos sucessivos de seca e de doenças, contornava-se as pedras e os regos, chegava-se a uma espécie de cais de madeira que o meu avô e o meu pai fizeram e podia-se passar horas a contemplar aquele espelho liso e calmo como se fosse o mar tirando a carne sumarenta às maçãs. Os ossos do cais ainda lá estão. Como as memórias. flutuam agora sobre uma carapaça de pó.
Depois de a água da barragem ter sido empurrada pela evaporação para um lugar longe daqui, ficaram destapadas as ruínas das casas onde em tempos esteve a aldeia onde nasceu o meu avô. À medida que o nível descia e deixava antever algumas das casas que o meu avô conhecia, foi-se desenhando um mapa na minha cabeça, com a ajuda do meu avô.
– Ali morava o Achigã.
– Olha, hoje já se pode ver a venda do Chiquelho. Isto está cada vez pior! Quando será que chove?
– Por aquela estradada de pedra ia-se ter aos lameiros, nunca conheci uma terra tão boa para a batata. Eram do tamanho destas botas.
Depois que o meu avô começou a perceber que aquela nudez era permanente, virou de vez as costas à paisagem outrora submersa, envergonhado de ver despudoradamente exposta uma história que a água havia mergulhado no esquecimento. Não desistiu. Surribou os terrenos do outro lado do serro, construiu poços, abriu furos, mas sem conseguir espremer às profundezas da terra uma gota de água que fosse. As searas pendiam, os canteiros foram perdendo o verde, os sobreiros despenteados por um vento em chamas até ficarem carecas, a cortiça mirrava nos troncos esguios, os medronhos do tamanho de berlindes. A sede tomou conta da terra, nasceram mais pedras no chão do que cebolas no solo e as oliveiras ficaram ocas por dentro.
Entretanto, o meu pai emigrou para um país onde o calor não mastigava e cuspia tudo. Meteu-se num barco com mais não sei quantos. Atravessaram um mar inteiro para chegar. Da nossa aldeia, só restamos nós. Fiquei eu, com a minha mãe e o meu avô, nesta terra, a viver da mesada que o meu pai envia enquanto o pó toma conta de tudo. Às vezes, perguntava ao meu avô se arriscava um palpite de quando é que o meu pai regressaria e o meu avô dizia que esse dia chegaria, seria exato como a matemática, embora não se pudesse pôr ali com previsões, que, para isso, bastavam as do estado do tempo e, mesmo essas, são sempre as mesmas, sempre iguais, na medida em que não dão chuva ou, se a dão, dão-na toda de uma vez, para dar cabo do resto. Ao jantar, antes de o meu avô acordar morto, foi a última vez que isso aconteceu.
A minha mãe telefonou ao meu pai a dar a notícia, ainda com a cebola que cortava para o almoço a cheirar-lhe nas mãos trémulas. A televisão estava ligada no mesmo canal que o meu avô tinha escolhido.
– O teu pai morreu, Valdemar. Acordou morto.
O meu pai disse qualquer coisa que fez um silêncio muito doloroso prolongar-se na minha cabeça. A minha mãe respondeu:
– Fazemos as malas e partimos para perto de ti, logo depois do funeral. Já não se pode viver neste lugar. Não há nada que nos prenda aqui.
Depois disso, a minha mãe disse coisas que eu não lembro ou não ouvi. Ao mesmo tempo, na televisão, um meteorologista anunciava dias seguidos de muita chuva.
A minha mãe desligou o telefone e chorou ainda mais. Abracei-a, cheio de medo. Não queria sair da minha casa. Chorei com ela, triste pelo meu avô, desesperado para que a chuva e as lágrimas enchessem de novo a barragem, mergulhassem de novo as ruínas do passado e pudessem trazer o meu pai e o meu avô de volta.