A vida secreta da alma: será um órgão invisível do nosso corpo?
A autora é psicoterapeuta, e revela-se altamente imaginativa na escolha do título, fala da alma não no sentido religioso, de algo que se separará do corpo quando se morre, mas num conjunto de funções, talvez uma constelação misteriosa, impalpável, que engloba todas as nossas perceções, afeta a atividade cerebral e do organismo no seu conjunto, influencia as nossas relações e define a nossa personalidade, e assim chegamos a uma narrativa, A Vida Secreta da Alma, de Sabine Wery von Limont, Pergaminho, 2019, o tal sistema de órgãos, e ela propõe-se contemplá-los, compreender como se formam, como funcionam e o que os torna doentes. Leitura estimulante ou desafiante, esta alma psicofisiológica, onde a psicoterapia pretende ter um papel determinante.
Como é que a autora apresenta este órgão, dado até agora como inexistente? Deste modo: “A alma é mais do que a produção de processos cerebrais e é mais do que uma construção científica. Ela está associada ao cérebro e tem vida própria, é orgânica e simultaneamente mística. Sabemos hoje tão mais sobre ela e, porém, não conseguimos explicar tudo. Está repleta de vida não explorada, vida de alma, ela está atenta e salva-nos constantemente a vida”. Reconheça-se imaginação à tessitura desta narrativa da autora e ao caminho que pretende percorrer: a razão pela qual temos uma alma, que é muito mais do que um monte de neurónios desordenados; como ela tem necessidades e garante a nossa sobrevivência; como atuam os padrões que influenciam a nossa personalidade; por que razão vale a pena inspecionar a fundo as doenças cardíacas, do sistema imunológico e as dores crónicas; e por que razão não há melhor meio contra o sofrimento psicológico do que a psicoterapia.
Podemos achar que esta aventura é uma mera curiosidade sobre tudo quanto já se sabe no domínio das neurociências e sobre o funcionamento do nosso organismo. Mas é uma leitura que está longe de dececionar. O nosso sistema límbico existe, temos um cérebro que não está apenas no alto da cabeça, nele atuam sensores, o que permite crer que o cérebro está em todo o nosso corpo. Qualquer estudante da área da saúde, da psicologia ou da bioquímica reconhece a veracidade de todos estes elementos, sabemos que há muito por descobrir e portanto confiamos na boa disposição da autora quando diz que a nossa alma é uma obra de arte que nunca está terminada.
Todos estes dados científicos têm a ver com a luta pelo equilíbrio, a que a autora chama as necessidades básicas da alma, o que fazemos para evitar morrer, a gama de necessidades espirituais básicas tão importante como as físicas, daí o passo em frente que se deu com Sigmund Freud, e posteriormente com as ciências sociais e humanas e as descobertas neurocientíficas, intermináveis. As tais necessidades espirituais básicas que dão pelo nome de autoestima, de apego, de autonomia, de prazer e o modo como se evitam as perdas. A autora disserta com propriedade sobre os nossos vínculos, como moldamos a nossa existência através de estratégias de gestão, como podem emergir as perturbações da personalidade e como estão classificadas. A escrita é ousada, estimulante, é um universo pouco atrativo de que fugimos: os mecanismos de defesa, a neurobiologia do medo, os ataques de pânico, a fobia social, os pensamentos obsessivos, as perturbações da ansiedade, medo e depressão, aonde e como, traumas e feridas da alma, sem esquecer a perturbação de ressentimento pós-traumático e a síndroma da exaustão.
Ousado e provocatório, pois a autora, em dado momento pretende explicar como é que a alma desapareceu do nosso corpo, relevando os psicossomatismos. E assim chegamos às doenças crónicas e como se conjugam a nossa alma com o sistema imunitário. Compreende-se que a autora queira levar a água ao seu moinho, compete-lhe exaltar e exultar a terapia. Recorda que uma terapia implica trabalho, que pode ser bastante dolorosa, como também é indispensável atingir-se o autoconhecimento. E depois explica-nos como funciona a terapia: os elementos de cura, a aliança terapêutica, a autoterapia. Foi seguramente adaptada à realidade portuguesa o que a Segurança Social cobre para terapia comportamental e outras terapêuticas, quais os medicamentos existentes.
E despede-se propondo que devíamos fechar contratos de manutenção para a nossa alma do mesmo modo como ganhamos consciência da própria saúde, melhoramos os nossos estilos de vida e promovemos intensamente uma gama de cuidados que tanto podem ir da saúde oral como chegar ao diagnóstico precoce. “Talvez em breve não haja nada de extraordinário em dedicarmo-nos à saúde psicológica de forma tão clara e natural, porque as pessoas finalmente perceberam que a alma merece ser valorizada”.
Reconheça-se que esta psicóloga tem conhecimentos atualizados na neurociência, na psicoterapia e na epigenética, que foi muito feliz e imaginativa com esta alma que resulta de muitas descobertas científicas e que nessa ótica é concreta, que se pode observar e compreender como se forma, como funciona e como deixa de funcionar. Como aventura científica é mesmo fascinante.