A nossa fábrica de energia celular e os elementos químicos
Celebram-se este ano os 150 anos da Tabela Periódica dos Elementos Químicos, proposta inicialmente pelo Cientista Russo Dmitri Mendeleev e que continua a ser revista e aumentada nos nossos dias. A Tabela Periódica é, na sua essência, o catálogo de todos os elementos químicos conhecidos pela Humanidade, uma espécie de mostruário das peças de Lego que temos disponíveis para formar estruturas mais complexas, e moléculas para os mais variados fins, desde o oxigénio que respiramos, até uma rocha granítica, até à Vida, nas suas mais variadas formas. Muitos dos elementos químicos da Tabela Periódica contribuem e são essenciais para a composição da Vida, desde uma pequena bactéria, até uma baleia azul.
Essencial para os seres eucarióticas (isto é, aqueles com um núcleo “verdadeiro”, que protege o ADN) são também umas pequenas estruturas denominadas mitocôndrias. Estes pequenos organelos microscópicos existem no interior de todas as células do nosso corpo, com excepção dos glóbulos vermelhos. São organelos críticos para a nossa vida…é neles que é produzida a maioria da energia que as células necessitam para sobreviver, a energia que retiramos dos nutrientes que consumimos, e onde se dá a verdadeira respiração celular. Podemos, portanto, dizer que as nossas mitocôndrias “queimam” os nutrientes que consumimos na presença do oxigénio que respiramos, para produzir energia, água e dióxido de carbono. Mais do que esta função de produtora de energia, as mitocôndrias são uma verdadeira fábrica de moléculas importantes para a nossa sobrevivência, convertendo os nutrientes e tijolos para a manutenção do edifício-célula.
No meio desta actividade frenética, paremos um pouco para identificar quais os elementos químicos do Grande Catálogo (i.e., a Tabela Periódica) que conseguimos identificar nas muitas moléculas, das mais simples às extraordinariamente complexas, que fazem parte da natureza permanente ou transitória desses organelos fascinantes denominados mitocôndrias.
Comecemos pelos mais usualmente encontrados na Natureza, com o seu símbolo e número atómico (isto é o número de partículas positivas, ou protões, no seu núcleo) entre parêntesis: carbono (C, 6), hidrogénio (H, 1), nitrogénio (N, 7) e oxigénio (O, 8). Encontrados na esmagadora maioria das moléculas na mitocôndria, desde o oxigénio molecular que respiramos, até ao esqueleto em carbono (e que pode conter nitrogénio) das moléculas biológicas, até à água que expiramos, fruto da nossa respiração celular mitocondrial. De facto, o oxigénio, que normalmente circula na forma molecular (O2), recebe constantemente electrões (partículas carregadas negativamente) de proteínas mitocondriais e transforma-se em outras moléculas, as denominadas espécies reactivas de oxigénio. Desta realçamos o peróxido de hidrogénio (H2O2), vulgarmente conhecido por água oxigenada (exactamente, o que está naqueles frascos que compramos na farmácia ou supermercado é também produzido nas nossas mitocôndrias). Apesar de, ao contrário do nome, não ser uma espécie tão reactiva assim, o peróxido de hidrogénio, quando produzido em baixas quantidades tem funções benéficas e importantes no nosso organismo.
Mas as mitocôndrias não têm na sua composição apenas aqueles quatro elementos. A lista é enorme e em alguns casos, surpreendente. Cálcio (Ca, 20), potássio (K, 19), cloro (Cl, 17), sódio (Na, 11), e magnésio (Mg, 12) circulam sob a forma de iões com funções de manutenção dos gradientes iónicos, gerando correntes de cargas que atravessam as membranas mitocondriais e que são parte crítica do funcionamento daquele organelo. O cálcio desempenha mesmo funções muito importantes porque a sua entrada na mitocôndria pode ter um efeito duplo. Para quantidades normais, o cálcio tem o poder de acelerar o metabolismo da mitocôndria, tal e qual um pedal de acelerador de um carro, actuando em várias proteínas envolvidas na produção de energia ou em outras vias metabólicas. Em quantidades maiores, o cálcio pode causar danos na estrutura das membranas mitocondriais, perdendo-se a integridade do organelo e podendo mesmo ocorrer morte celular.
Fósforo (P, 15) é outro elemento crítico, sendo parte não só do esqueleto do ADN mitocondrial (tal e qual como o ADN nuclear), mas também fazendo parte de moléculas energéticas mitocondriais, como o ATP (adenosina trifosfato). O “mal-cheiroso” enxofre (S, 16) faz também parte da mitocôndria, não só como parte do gás sulfito de hidrogénio (H2S), que pode regular a respiração celular, mas igualmente como parte integral do local activo de várias enzimas (proteínas que aceleram reacções químicas nas nossas células), incluindo algumas envolvidas nos processos de geração de energia (ATP) na mitocôndria. Igualmente com a mesma função, encontramos a presença de ferro na mitocôndria. Aliás, a enzima que na respiração celular transforma oxigénio molécular em água, possui centros de ferro onde essa fantástica reacção ocorre. Outro exemplo é o cobre (Cu, 29), que se localiza em locais activos de proteínas envolvidas em transferências de electrões para produção de energia mitocondrial.
Para outros contextos, temos igualmente exemplos admiráveis. Uma proteína mitocondrial chamada superóxido dismutase II (que controla os níveis mitocondriais de espécies reactivas de oxigénio, nomeadamente uma denominada anião superóxido, de modo a não serem prejudiciais) possui manganês (Mn, 25) no seu local activo. O zinco (Zn, 30), surpreendentemente, é um elemento muito importante para várias enzimas mitocondriais, que contam com esse metal nos seus locais activos. Exemplos são enzimas conhecidas como proteases, que processam (”cortam”) outras proteínas.
O catálogo aumenta se contarmos com alguns “encontros imediatos” das mitocôndrias com vários iões que estejam de “passagem”, como níquel (Ni, 28), selénio (Se, 34), vanádio (V, 23), fluor (F, 9), titânio (Ti, 22) e muitos outros, que poderão ter efeitos benéficos (como por exemplo para doses baixas de selénio), até efeitos negativos (doses elevadas de níquel, titânio e vanádio). Muitos desses elementos são originários da nossa dieta ou exposição a poluentes ambientais.
Por esta descrição se vê como as mitocôndrias são uma amostra do que realmente somos. Um conjunto de elementos químicos, que andam sozinhos ou acompanhados, e de cuja mistura dos elementos certos na quantidade certa no local certo, resulta o que chamamos de Vida. E esta Vida precisa da faísca da energia, que no nosso caso é conseguida na sua maioria através desses organelos-pilhas chamados mitocôndrias.
Paulo J. Oliveira (Investigador Principal do Centro de Neurociências e Biologia Celular, Universidade de Coimbra. Professor Auxiliar Convidado, Universidade de Coimbra)
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