«À DESCOBERTA DE LISBOA E DO MUNDO!» uma viagem por dentro e por fora
«Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.»
(Bernardo Soares, «Livro do Desassossego».)
42 alunos. 3 professores. 2 motoristas. 1 autocarro. Uma data (22 de fevereiro).
E o destino: Lisboa.
Antes e depois, as amendoeiras em flor.
Mas a Raíz vem antes, e, por isso, verdadeiramente, tudo começou em setembro… a Ideia.
Foi assim: escola básica Manuel do Nascimento; três turmas do oitavo ano, A, B e C; professores a olhar para o futuro; a paixão pela poesia; o gosto pela história; o amor à arte; e a transversalidade lógica disso tudo no Ano Europeu do Património Cultural: 2018. Ingredientes certos e necessários para que pudesse nascer a visita de estudo «À Descoberta de Lisboa e do Mundo!», com Português à procura do(s) Fernando(s) Pessoa(s) nos recantos do Chiado, do Rossio e do Terreiro do Paço; História a navegar ao encontro de caravelas e heróis do mar, lá para os lados de Belém; Educação Tecnológica a querer saber, no recém-nascido Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, isto: o que é a arte no século XXI?
Acordar mais cedo, na escuridão da antemanhã, pode, claro, custar. Mas é seguramente excitante na perspetiva de um dia de escola diferente… Eram 07:35 quando, entre risos e gargalhadas sonolentas, saímos de Monchique em direção à luz de Lisboa. Atravessar a ponte 25 de abril com o Tejo a chamar em baixo e a brancura das pedras a brilhar ao longe trouxe, depois de quatro horas de agitada viagem, o silêncio pasmo que sempre se ouve face ao mistério do Belo. À nossa espera, no Largo de São Carlos, mesmo em frente ao local de nascimento do «mais universal poeta português», estavam as duas guias da Casa Fernando Pessoa com quem iríamos fazer o percurso pedestre Quando Vejo Esta Lisboa… «Veem? É ali, no quarto andar, aquela janela, à esquerda, estão a ver?»
Apontavam para a casa onde Fernando Pessoa nasceu e viveu até aos 5 anos. De repente, um som que se prolonga em eco e rompe a conversa; narizes ao ar, expectantes, à procura de um aroma. Vem da Basílica dos Mártires, e é um som. Logo, os famosos versos: «Ó sino da minha aldeia/ Dolente na tarde calma,/ Cada tua badalada/ Soa dentro da minha alma.» Sucederam-se então, um após outro, os lugares de Pessoa. Os passos em volta desses espaços biográficos marcaram o ritmo: pausa, movimento, pausa, movimento… As mãos, expectantes, tomaram notas do dito e observado no caderninho oferecido pelas guias. Houve tempo para sentar à mesa com Fernando Pessoa, no café A Brasileira, e até para escrever uma mensagem de amor, ali mesmo em frente ao escritório onde o poeta-tradutor terá conhecido Ophélia Queiroz, possivelmente a única namorada que teve, e a quem escreveu: «Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho…». Ridículo? Talvez. «Mas, afinal,/ Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas.» (Álvaro de Campos)
O encontro com o poeta terminou no Café Martinho da Arcada, que ostenta com orgulho o título do café mais antigo de Lisboa (1782), e onde, apesar da grande azáfama do almoço, nos deixaram espreitar a famosa mesa onde o autor de «Autopsicografia» se costumava sentar, fosse a beber, a conversar com artistas, ou, naturalmente, a escrever.
Em redor, adornando as paredes, inúmeras fotografias emblemáticas, que dão corpo aos versos e aos textos lidos nas aulas.
Percebemos. Tem razão o Poeta:
«Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade – não o neguemos – facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada movimento ínfímo, vulgar, rídículo (…).» (Fernando Pessoa, «Escritos Autobiográficos».)
Era hora de rumar a Belém!
Aguardavam-nos os esverdeantes jardins, o sol de inverno, a relva fresca, e o farnel trazido de casa, carinhosamente preparado. De um lado, o fulgor do rio, do outro, a memória das pedras ancestrais.
Estômago saciado, avançámos ao longo do Mosteiro dos Jerónimos, majestoso e imponente, como cumpre afinal a quem faz vigília aos túmulos de Luís de Camões e Vasco da Gama. Na outra ponta? O esperado Museu da Marinha, também ele bordado a estilo manuelino, essa «flor dos acasos/ que», no dizer de Sophia, «a errância/ Em sua deriva agrega». E então floresceram novamente todas as aprendizagens das aulas de História, agora mais vivas, mais reais, mais dentro, com o professor perto, a explicar, enquanto aponta, sorrindo: «Sim, é o Infante D. Henrique, o Navegador». Imortalizado n’Os Lusíadas, os versos abrem-se diante de nós: «Assim fomos abrindo aqueles mares/ que geração alguma não abriu./ As novas ilhas vendo e os novos ares/ que o generoso Henrique descobriu». Fascinante aventura marítima, primeiro e importante passo para a globalização de hoje, incrível e apaixonante momento da história humana! Ah, «Valeu a pena?», perguntou Pessoa, «Tudo vale a pena./ Se a alma não é pequena.» Gil Eanes, Fernão de Magalhães, Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, todos renascem pelo olhar das nossas crianças, que escutam, por um instante, o som desse «mar tenebroso», povoado de monstros e mostrengos, onde apenas alguns, «loucos», ousaram entrar.
E também o vento. E também o vento.
Mas eis que (perdido e reencontrado um telemóvel) algo mais Antigo nos convoca. É o rio.
«O Tejo tem grandes navios/ E navega nele ainda,/ Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,/ A memória das naus.» (Alberto Caeiro)
Hoje, porém, está brando, o rio. Talvez por isso, caminhamos devagar a seu lado, percorremo-lo suavemente, não sabemos quem faz companhia a quem. Seguimos, muito atentos, não vá o Tejo querer contar-nos algo: um segredo, uma profecia, ou talvez uma palavra só. Essa.
Barco enorme de pedra branca que resplandece num quase final de tarde: o MAAT. Foi aí que descansámos, nos degraus infinitos da entrada geométrica. E de novo o silêncio que surge da reverência ao Belo: é uma ponte que não acaba nunca e que ganhou a cor da liberdade; é um rio-mãe que abraça a cidade-ventre; é um arco e é uma linha; é aquela gaivota, sim essa, que voa só para nós. Apetece tanto citar Adília (Lopes): Lisboa, «Cidade branca / semeada / de pedras/ Cidade azul / semeada / de céu/ (…)/ Cidade prateada/ semeada/de Tejo.»
Até que chegaram os envelopes brancos.
Para cada par, uma tarefa, isto é, uma pergunta. São agora alunos-detetives, às dezenas, a invadir o famoso museu. Notícia de jornal! Avançam pelas salas imensas como se tivessem lupa, espreitam, experimentam, soltam gargalhadas, enganam-se e recomeçam. A agitação das crianças desmonta a solenidade do espaço. É a rotina que cede lugar ao maravilhamento. Vieram da serra e querem saber se há diferenças entre a «Mona Lisa» de Leonardo da Vinci, no Louvre, e os vídeos da exposição «Tensão & Conflito: Arte em Vídeo após 2008», no MAAT, trabalhos de 22 artistas de todo o mundo. Naquele vídeo, ali, a artista reescreve notícias com água no muro de betão da Casa Wabi, no México. Um muro com mais de 300 metros! Como a água se evapora, sempre que ela acaba de escrever uma notícia, já não se pode ler o seu início… É arte? É disparatado? É instrutivo? É bom? É bonito? Muitas dúvidas! Mas estarão cheios, os 21 envelopes brancos: de respostas a dois. E farão o gáudio da professora de Educação Tecnológica.
Fora, cai sobre o dorso da água uma luz dourada, mansa, apetecível. Centenas de estrelas parecem dançar sobre o rio. Pede sossego, a paisagem, mas é hora de voltar. Alguém lembra os pastéis de Belém… Há encomendas da família. Fica no ar o aroma da canela e permanece o conforto da massa quente a dissolver nos lábios. Há montes que nos esperam ao Sul. Haverá ainda uma energia inesgotável no autocarro, música e gargalhadas, o motorista que diz “Meninos!”, depois, a vila a respirar mansidão, faróis a iluminar a noite escura, e os pais, no interior, à espera de abrir os braços. Os carros desparecem na curva, um, depois outro, outros… De novo, o silêncio. Amanhã, na escola, correrão como um rio curvo as memórias alegres de um dia especial.