A cultura servida como uma memória prodigiosa e o fulgor da inteligência
Não são poucas as vezes que questiono o mau destino que concedemos a certos textos, ditos crónicas, artigos de jornal e revista, que grandes figuras da literatura publicaram e que tratamos como produto interessante mas não de primeiríssima classe. Sucedeu assim com Ramalho Ortigão ou Fialho de Almeida, Raúl Brandão ou Eça de Queiroz, vai sucedendo com José Saramago ou António Lobo Antunes. As coletâneas de textos avulsos são para saborear e arrumar na estante. E ponto final.
Grande ilusão, há nestes articulistas textos luminosos, tão ou mais indispensáveis daqueles que encontramos no romance ou novela, só que estão marcados pelo labéu de prosa efémera, datada, circunstancial.
Vem isto a propósito de crónicas sublimes, de leitura obrigatória, publicados com o título “Crónias: imagens proféticas e outras”, por João Bénard da Costa, Sistema Solar, 2015. Em muitos casos, quem vê capas e vê títulos das obras não se pode aperceber do tesouro que é posto à sua disposição. Este João Bénard da Costa, que foi professor, um dos fundadores de uma revista de referência das décadas de 1960 e 1970, O Tempo e o Modo, um porta-voz do catolicismo de vanguarda, que presidiu aos destinos da Juventude Universitária Católica, que ficou conhecido como o senhor cinema, escrevia admiravelmente, possuía uma cultura muito bem digerida e ruminada, daí a viagem que lhe oferecem estas crónicas que publicou no jornal o Público, em 2007. Visita museus, disserta sobre santos e evangelistas, terá conhecido como ninguém o cinema desde o período mudo, foi um melómano que nunca esqueceu o poder vital de vozes e talentos, nunca escondeu a profunda admiração pelo cinema de Manoel de Oliveira, não conheço nenhum outro leigo que tenha escrito tão vibrantemente sobre a Páscoa, a maior de todas as festas, fez licenciatura em Históricas e Filosóficas, deixou marcas, bem sulcadas, na sua cultura, pensou nos anos 1950 em fazer uma tese de doutoramento em Kierkegaard, e segue-se um comentário com tons pícaros: “A Gulbenkian tomou-me a sério e deu-me uma bolsa para tal efeito. Felizmente, essa bolsa deu-me ensejo de conhecer Jean Wahl, o autor dos Études Kierkegaardiens que, quando eu lhe contei ao que vinha me perguntou se o meu dinamarquês era fluente. Perante o meu pasmo, baixou a bitola e quis saber o estado do meu alemão. Confessando-lhe eu que o meu alemão era quase tão nulo como o meu dinamarquês explicou-me, com paciência, que as traduções francesas ou inglesas de Kierkegaard eram lamentáveis e que não valia a pena continuarmos a falar sobre um assunto em que eu não tinha a mais remota possibilidade de dizer coisa com coisa. Saí do almoço razoavelmente abatido. Depois, desabato-me sempre, que nem a tolinha-das-couves chega para me abater”. E a seguir a sua crónica enverada sobre a paciência e o seu suporte cultural é tão versátil que lhe permite citar o “boi da paciência” do poema de António Ramos Rosa, um dos mais belos poemas da nossa língua:
“A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!”.
Refletir sobre o 10 de Junho é chegar a um outro grande poeta, Jorge de Sena e daí a versos deslumbrantes de Os Lusíadas: “Nem me falta na vida honesto estudo / com esta longa experiência misturado / nem engenho, que aqui vereis presente / cousas que juntas se acham raramente”. Volta e meia, a matéria cinematográfica atravessa-se no texto com a mesma naturalidade com que ele evoca os grandes cantores que o deslumbraram caso de Teresa Stich-Randall. A pintura de Reubens, o deslumbramento da Serra da Arrábida, os textos pontifícios são presença regular nos seus escritos. No termo do livro, descreve comoventemente a vida dos Cartuchos, visita a Cartuxa de Évora e escreve a propósito: “Clamar no deserto é clamar sem que ninguém nos oiça. Clamar: preparai, no deserto, os caminhos do Senhor é acreditar que só no deserto se podem preparar esses caminhos. Nenhuma ordem contemplativa nos disse tanto. Nenhuma – nem os cartuchos, monges dos monges, disseram que só na solidão e no silêncio era possível preparar esses caminhos. Mas acreditaram (desde 1086 que acreditam) que, se alguns não fizessem a experiência do deserto, o amor das gentes não seria o mesmo”. E perto do final da crónica: “Começou a escurecer. Era a hora das Vésperas. Cosido contra o muro, como sempre andam, passou junto de mim um frade de baixíssima estatura, a cabeça toda coberta por enorme capuz. Não nos deixaram entrar na capela onde decorria a cerimónia, mas ouvia-se o gregoriano. À volta, os visitantes continuavam a conversar. Apetecia-me ouvir o silêncio, como costumo pedir às crianças, nas matas da arrábida, mas o silêncio com tanta gente era impossível”.
João Bénard da Costa deixou-nos em 2009, é uma ausência irreparável. Ao que parece, ainda vamos ter a felicidade de poder vir a ler as suas últimas crónicas. Se fosse ao leitor, não perdia a oportunidade, única, de comungar com este humanista, este religioso e o mais prestigioso cinéfilo que alguma vez apareceu em Portugal.