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A Arte do Ser

“Há uma Arte do Ser que fica
muitas vezes ignorada:
que nós a descubramos,
humildes mas também vibrantes”

J. Tolentino Mendonça
in “Um Deus que Dança”

sabor
Zé Ventura, sem t´tulo. 2014

Não começo o que vou contar por Era uma Vez… porque:
Foi uma vez verdadeira e ainda outra vez verdadeira. Três relatos de factos autênticos que ouvi em lugares e tempos diferentes, mas todos subordinados à aprendizagem do SER que nos conduz à Arte do Amor. À descoberta da essência.

O debruçarmo-nos sobre o Ser é muito diverso, complicado, profundo e extenso – exige um bom jogo de conhecimento e de raciocínio. Imagine-se a complexidade de algumas definições léxicas (ou filosóficas): “SER – tudo aquilo que é ou pode vir a ser. Aquilo cujo ato é existir – ENTE. Tudo o que existe e é animado – CRIATURA. O íntimo de alguém – Alma, Consciência, Essência.” Só este item, o anterior ou qualquer deles, dava para uma longa explanação e muitas horas de discussão.

Para mim e para a minha maneira de ser, a fórmula mais completa é a ESSÊNCIA. Mas que poderei eu dizer do SER, se todo o ser é uma dualidade? Em cada um de nós há o carrasco e a vítima, o algoz e o supliciado, a mentira e a verdade, e por aí fora, até chegarmos ao Mal e ao Bem, à Vida e à Morte.
Aprecio muito a sabedoria oriental, na sua incansável divulgação da espiritualidade, da paz, do bem e do amor. Thich Nhat Hanh, um monge vietnamita, poeta e escritor, pacifista e ativista da paz e dos direitos humanos, de 89 anos de idade, tem um longo poema intitulado “Chama-me pelos meus verdeiros nomes”, do qual transcrevo algumas linhas: “Estou a chegar, para poder rir e chorar, / para poder ter medo e esperança. / O ritmo do meu coração é o nascimento e a morte / de tudo o que está vivo.” E, mais adiante: “Sou a criança de Uganda, todo pele e osso, / as minhas pernas estão finas como caniços de bambu, / E sou o traficante de armas, a vender armas mortais / para o Uganda.”

Por tudo isto e por muito, muito mais, o Ser respira no transcendente e desenvolve-se com o perfume da sensibilidade. É o Dom.

Mas vamos aos factos:
1. Foi uma vez no coração do grande continente africano. Ela era brasileira, professora. Foi para África acompanhada por uma colega, de quem se separou por irem exercer em escolas de lugares diferentes, mas, na imensidão das distâncias, relativamente perto. Quando um ano mais tarde voltaram a encontrar-se, a amiga contou-lhe que na sua escola havia a “professora perdão”… O que é isso? perguntou-lhe ela. E a colega contou-lhe o caso mais impressionante a que assistira:

Frequentava a escola um garoto indomável. Pode dizer-se que, apesar dos seus 12 anos, incendiava a comunidade escolar com todo o seu proceder – socos, pontapés, humilhações, violência, faltas de respeito e medo. Começou por ser castigado, cada vez com mais rigor. Até que um dia, na hora do recreio, entrou na sala de aulas dessa tal professora e roubou-lhe a carteira. E foi descoberto. Como sempre e mais uma vez, a lesada apenas disse Eu perdoo-te. Mas o diretor, com base no regulamento da escola, esclareceu-a que, desta vez, não poderia perdoar porque o aluno tinha já atingido o número limite de castigos e que teria que sujeitar-se ao regulamento. Mandou reunir, em círculo, no terreiro do recreio, todo o pessoal da escola. No meio estava o “terrorista” que, para exemplo de todos, iria ser açoitado e expulso. Fez-se um silêncio de pedra, pesado e esmagador e, de súbito, uma voz embargada de lágrimas, numa comoção incontida, gritou EU PERDOO!!! Como uma girândola de fogo de preso que enche a noite de luzes, de brilhos, de cores e de som, rebentou em coro, do fundo do coração de todos os presentes, a compasso e em uníssono Eu perdoo, eu perdoo, eu perdoo… O diretor foi o último, mas também ele, de olhos molhados, se juntou ao coro, gritando Eu perdoo!!!

Na última linha do seu livro “A Desumanização”, Walter Hugo Mãe, diz “Quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas”.
2. Foi outra vez também em África, esse misterioso continente cruzado de culturas, saberes e práticas, num pequeno aglomerado de choças perdido no mapa, encoberto pelas copas verdes e altas da floresta.

Nessa pequena aldeia respeitavam-se as leis do chefe e as tradições transmitidas pelos maiores, seus antepassados. Foi aí, nesse lugar que quase se podia dizer que não existe, que certo dia apareceu “o estrangeiro”.

Não sei de que nacionalidade, não sei de que religião. Disse que vinha falar-lhes de Deus e do Amor. Bastou isto para ser bem acolhido. Foi ele que contou a um amigo o episódio a que tinha assistido no pouco tempo que lá permanecera. E o amigo repetiu-o a um outro amigo, numa cadeia de sentimentos e emoções, até chegar ao conhecimento da pessoa a quem eu o ouvi contar. E que, antes do relato, começou por dizer Nunca falei deste episódio sem me comover até às lágrimas… vamos lá ver se hoje consigo resistir.

Ora aconteceu que, numa madrugada densa e ainda sem laivo de cor, o estrangeiro acordou com um sufoco que o estrangulava, uma opressão que não sabia explicar. Mas depressa foi sacudido pela descoberta – o Silêncio. Era isso – um silêncio estranho, misterioso e inquietante, pesado e frio como uma cascata. Sem um estalido de ramo seco, sem o ruído de um fruto a cair, de serpente a rastejar ou de ave a piar. Nada. Parecia-lhe estar cego, surdo e mudo. Precisava respirar. E quando saltou ao terreiro foi surpreendido por uma cena fantástica: de todos os lados surgia gente empunhando um archote.

Formando um círculo no terreiro. A chama dos archotes queimava o silêncio, alimentava-se dele. Por último, um homem ainda jovem veio do lado de fora, rompeu o círculo e, de mãos pendentes e cabeça baixa, colocou-se no centro. O chefe, com o seu archote a arder, foi colocar-se por detrás dele, sentado no chão.

Um galo cantou. E todos os archotes foram apagados, esfregados na terra. A selva incendiou-se com o vermelho filtrado do sol nascente. E os pássaros, quase a medo, começaram a cantar. O chefe levantou-se, pôs-se à frente do outro e disse Este homem cometeu uma indignidade. Por isso não poderá continuar entre nós. Mas tudo depende do nosso juízo e do que soubermos dele.

E, uma a uma, todas as pessoas da aldeia foram avançando e ficando a meia distância do ”indigno”. Todas elas, sem faltar uma só, foram apontando uma boa ação que o viram cometer, tudo o que de bem e de bom sabiam dele. O chefe encerrou este julgamento de Misericórdia dizendo E eu vi-te, na margem da savana, arriscar a própria vida para salvar o meu filho, ferido e quase morto por um animal selvagem, tirando-o das garras de um abutre que se preparava para desventrá-lo. O nosso Amor por ti pede-te que fiques entre nós, que não nos deixes.

Todos se aproximaram e, num abraço compacto, apertaram o amigo, redimido pelos seus méritos, com um amor ainda maior.

Depois disto, é forçoso terminar (mais uma vez, mas agora completo) com o pensamento de Tolentino – “Há uma Arte do Ser que fica muitas vezes ignorada: que nós a descubramos, humildes mas também vibrantes, acreditando-nos amados e, por isso, capazes de uma plenitude feliz”.

Lisboa, 18 dezembro 2015

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