Sobe a maré negra

“Sobe a maré negra”, de Margaret Drabble, Quetzal Editores, 2019, é um espantoso romance sobre o envelhecimento nas sociedades atuais, mesmo que a ação esteja centrada na sociedade inglesa. É um romance onde pulsa o humor negro, permite-nos visualizar a problemática dos seniores em todas as novas dimensões sociais, éticas e culturais. Romance agridoce, polifónico, carregado de mensagens positivas sobre o viver bem até ao fim, dá-nos uma paleta de como hoje, com o avassalador crescimento da terceira idade, se abrem inúmeras atividades, ocupações e propósitos para que os seniores procurem a felicidade e a entreajuda. Quem tudo nos vai contar desse segmento de idade tão desmesuradamente crescido é Fran (diminutivo de Francesa), que trabalha para uma ONG, que acompanha um ex-marido que já não sai de casa, tem dois filhos um tanto longínquos e ajuda os amigos na doença e na solidão. Numa viagem proporciona-se ir visitar a tia Dorothy, aqui fica o seu ambiente envolvente e o seu retrato:

“É uma casa dos anos trinta em mau estado, de implantação assimétrica, dois andares com duas amplas divisões e janelas de sacada, e por cima de uma delas um grande quarto com vista. É sossegada, é calma, um lago no meio das vagas agitadas de demolição e restauro. É aí que vive há muitos anos em sossego a tia Dorothy. Cada quarto tem o seu televisor, a comida é caseira e a ementa muda todas as semanas; há acesso à igreja e às lojas locais, assistência médica. Tudo por uma média de 400 libras por semana.

Dorothy é miudinha. A pele é clara, sem manchas e quase sem rugas, os olhos de um azul luminoso, os lábios rosados e com um toque de batom juvenil perfeitamente aplicado; o cabelo de prata é fino mas está penteado na perfeição em caracóis e ondas suaves perfeitamente controlados em torno da testa correta e do rosto oval. Foi uma beldade. Ainda é uma beldade. É frágil, é delicada, uma estatueta de porcelana. Está otimamente preservada e com boa apresentação no salão sobreaquecido daquele lar muito acolhedor. Saia cinzenta, uma blusa creme com um belo bordado, um casaco de malha azul-claro, brincos de prata e um colar de pérolas”.

Francesca dedica-se muito ao alojamento para idosos, acompanha este tipo de habitação e procura a melhoria dos apoios à vida dos idosos. Assiste a conferências, é chamada a dar pareceres, viaja muito, dorme em pequenos hotéis de conhecidas cadeias, e quando regressa responde às solicitações a que se devota a começar pelo seu ex-marido.

Margaret Drabble é nome cimeiro das letras britânicas, arriscou muito nesta incursão pelo mundo dos mais velhos, maneja com perícia os seus problemas delicados e íntimos, momentos há em que parece correr em cima do fio da lâmina, e o que escreve tem um sentido de ser verdadeiro, por vezes devastador, aproxima-nos carinhosamente de gente que investe muito na cultura, nas academias da terceira idade, como é o caso de Sheila, assim apresentada: “Sheila é pequena, miúda, diminuta. É muito nova, sessenta e poucos, e plena de energia inteligente e contagiante. Trabalha em part-time num hospital e passa a maior tempo do que lhe resta de tempo a olhar pela mãe com demência. As manhãs de terça-feira são a sua folga, o seu refúgio. Parece um elfo, com o queixo pontiagudo, as sobrancelhas finas arqueadas e os grandes olhos cinzentos ligeiramente protuberantes que ela sublinha com rímel, eyeliner e sombra em tons da moda. A zona em redor dos olhos está muito estragada, mas ela, ousada, não deixa de os sublinhar. Veste muitas vezes leggings coloridas com uma túnica ou um camiseiro, por vezes de engraçadas bainhas elaboradamente assimétricas”.

Há velhos nas Canárias, o filho de Fran por ali aparece, dá-nos o pretexto para conhecermos uma tragicomédia de afeto homossexual. Romance onde se cruzam muitas vidas, onde vão desaparecendo velhos amigos, e outros estão a dar o seu melhor no fim da sua vida, caso de Teresa, uma amiga íntima de Fran:

“Sente-se em baixo. Está desiludida consigo. Está cansada de estar doente. Não lhe parece que tenha medo de morrer e de momento não tem muitas dores, restaurada pela mais recente dose de químio. Recosta-se nas almofadas altas, fecha os olhos. Não tem bem claro o que deve fazer, ao nível espiritual, com o tempo que lhe resta. Nunca gostou muito da conversa da luta e da batalha e, de qualquer modo, sabe que a batalha está de antemão perdida. Conheceu algumas pessoas que perderam a fé bem tarde na vida, nos seus sessenta, setenta anos, até nos oitenta. Porque a história humana é tão dececionante, porque a sua crueldade é muito grande, e o tratamento que Deus dá à sua criação é muito difícil de interpretar”.

É um mundo onde se mobilizam seniores maduros das classes médias, Fran é imparável, não larga a sua missão, continua a percorrer o país, desta vez vai à procura de um lar de mineiros convalescentes, faz o seu exame de vida: “Foram dois meses muito longos. Ela era muito mais nova, há dois meses. Pisou com firmeza um patamar durante anos, dos sessentas aos setentas, mas agora desceu de repente um degrau. Foi o que aconteceu. Fran sabe tudo sobre o assunto. Foi muitas vezes avisada acerca deste degrau descendente, desta prateleira de baixo. Não é um rochedo da queda, é a descida para um novo tipo de patamar, para um nível inferior. Tem-se a esperança de ficar ali mais uns não sei quantos anos. Nas décadas do meio, está-se numa montanha russa. Aos setenta, já não é bem assim”.

Há mais perdas, haverá sempre mais perdas, em jeito de epílogo Margaret Drabble vai encontrando finais para todas estas personagens, no ar fica um sério aviso que as gerações que se seguem vão viver um pouco mais e com problemas parecidos.

Romance admirável, dir-se-á de leitura obrigatória para quem encara de frente os desafios postos pelo envelhecimento bem-sucedido.

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