Primeiro texto

Penso no passado e no futuro, e na forma como se completam, interagem e escrevem eles mesmos o próprio tempo. Penso nisso enquanto nada surge. Nem uma palavra. O tempo é branco, deduzo, olhando para a brancura à minha frente. A brancura de um novo ano, alguém deverá escrever sobre isto.

Mexo e remexo em papéis por toda a casa. Eles dizem coisas que a folha esquecida sobre a mesa desconhece, dizem e não dizem, porque o seu tempo passou, o tempo daquelas palavras passou.

Este é também o tempo de Jano (do lat.: Janus), deus romano das mudanças e transições, com a sua cabeça olhando simultaneamente o passado e o futuro, tal como a charneira das transformações que a época proporciona.

Conta-nos Ovídeo sobre Jano:

Tal como as portas têm dois lados, e um porteiro fica por fora, também este deus era então o porteiro da corte divina, e com as suas duas faces podia então olhar para lugares opostos, tal como Hécate (com suas três faces) podia vigiar atentamente as intersecções das estradas.

Fico então imerso numa brancura dúplice, como esta cabeça de duas faces, olhando o passado e o futuro numa página branca, de um lado os acontecimentos à distância do esquecimento e do outro, semicerrando os olhos, o vulto dos acontecimentos futuros. Este é o tempo da brancura, ou não fosse ela esse fulcro presente na página branca. A página branca de Jano, aquela que eu observo sobre a mesa de trabalho, antes que qualquer palavra se torne visível.

Fig. 1 – Gravura representando o deus Jano.
Fig. 1 – Gravura representando o deus Jano.

 

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