Os Sapatos

“Somos o instante que se prolonga.
Somos o duro desejo de durar.”
Tolentino Mendonça In Que coisa são as nuvens, Revista E, do Expresso

PASSOS ATRÁS
Tenho um amigo. Muito amigo. De quem sou profundamente amigo. Que é mais velho do que eu. Que tem mais 10 anos do que eu.
E aqui começa a esgrima das palavras. O duelo do verbo, da força do verbo, com a subtileza da “coisa”, do sentir. Ter e ser. Ser e ter.
E tu? Que preferes? Qual é a tua escolha? Por exemplo: Ter sapatos ou ser sapatos? (Que exemplo estúpido, dirás). Mas é exemplo explicável. Se reparares, É. Ter uns sapatos é ter, é possuir. Uns sapatos que não são o nosso número, que nos fazem calos ou caem dos pés. Que nos incomodam. Mas ser sapatos é uma opção que nos enriquece. Pelo sonho e pelo sentir. Que nos leva onde a imaginação ou o compasso da vida nos possam conduzir. Ser ou ter é o velho dilema, e será sempre porque faz parte da raiz do homem. Mesmo quando todos os homens andavam de pé descalço e a saltar de árvore em árvore, de ramo em ramo…

Ora bem: a pessoa de quem eu sou amigo e que é minha amiga, sofreu um acidente que o impediu de andar. Deixou de ir. Já não podia ir. Tratou-se, fez fisioterapia e começou a utilizar uma cadeira de rodas. Desmotorizada. Os passos seguintes foram dados pelo braço da mulher e, mais recentemente, com o auxílio de uma bengala. Este amparo ajudou-o a sentir-se mais seguro, mais senhor de si, mas não foi capaz, por mais esforços que fizesse, de lhe substituir os chinelos. E os pés agradeceram a companhia que lhes fazia aquela terceira perna.
Até que um dia (há sempre um dia) o meu amigo cansou-se de chinelar e de ser quase inválido. E pensou: vou experimentar calçar os meus sapatos, aqueles mais velhos, mais largos, mais feitos aos pés… A soma destes mais (+++) empurrou-o para a ousadia. Ousadia que todo o seu ser sentiu. Os sapatos assentavam-lhe como uma luva (“Não quero dizer que se os calçasse nas mãos, lhe ficariam da mesma forma confortáveis, porque o meu amigo excelentíssimo não é nenhum quadrúpede, mas sim um bípede, um homem vertical, com um princípio vital (alma) e um princípio racional (espírito) perfeitos e abundantes de perfeição entre os da sua espécie.

1.º PASSO
Não podia acreditar que os sapatos lhe ficavam a primor. Que não o magoavam em qualquer relevo dos pés. Seria possível? E, por discernimento dos seus princípios, deixou-se ficar a saborear o momento como se debulhasse um cacho de uvas. Oh aquele sabor novo e gostoso de poder ser sapatos. Ele não os queria ter para nada, estavam postos de lado, como coisa inútil, a um canto. Mas queria ser sapatos que o levassem como asas onde lhe desse na cabeça. E continuou a ficar assim, de olhos fechados, puxando as uvas bago a bago, embriagado pelo momento. Ele e as uvas eram “ o instante que se prolongava”. E, ao lamber-se, guloso, as uvas provavam-lhe que também elas eram senhoras do tal princípio vital. Que harmonia é a criação! Apetecia-lhe cantar mas, porque não tinha voz que se prestasse ao canto, começou a assobiar baixinho. E aí sim: assobiava a velha canção francesa do seu tempo de rapaz,“ C’est la rose l’important”.De repente abriu os olhos – ainda estava sentado debaixo da macieira em flor do seu quintal. Na sua frente, mesmo em frente do seu olhar, lá estava a roseira perfumada de que ele tanto gostava:“L’important c’est la rose”. Levantou-se, deixou a bengala abandonada no chão e foi direito à querida rosa. Parecia-lhe que não andavalevitava. Acariciou-a. Sorveu-lhe o perfume…e colheu-a. Dizendo: Desculpa minha querida, mas há prioridades no amor. Com a flor escondida, voltou para casa, ao encontro da mulher que, estranhando o silêncio e a demora vinha também ao seu encontro. Ele estendeu-lhe a flor dizendo: “É para si, minha senhora…”.E abraçou-a, cheio de alegria. Ela beijou-o comovida.
Este meu amigo não é, nem nunca foi homem de lamechices vive as coisas por dentro.

2.º PASSO
Ali onde o meu amigo mora, a luz é maravilhosa. Mergulha no mar como uma menina e volta à superfície no rebentar das ondas. Espalhando no ar o perfume salgado do seu corpo. E a tarde é um animal alado adejando no labirinto celeste das ruas.
– Até logo, ate logo, disse ele ao sair.
– Mas para onde vais?
-Não te preocupes comigo, vou bem. E não te impacientes se eu demorar um bocadinho. Depois vais gostar de ouvir contar por onde andei…
-Toma cuidado marido. E volta depressa…
Ela e a rosa ficaram sozinhas “L’important c’es la rose, c’est la rose l’important”.
O meu amigo saiu eufórico de casa. Mas, com prudência, avançava mais lentamente do que desejava. Mesmo com os sapatos sentia, ou parecia-lhe que sentia, a falta da bengala. Só um nadinha, mas sentia. Entrou no centro comercial e dirigiu-se ao quiosque onde, desde há anos, era costume comprar os jornais. Mais dois amigos: os jornais e o vendedor que saiu do meio das notícias e das letras, e entrou no gesto da sua estima. Abraçou-o efusivamente por tornar a vê-lo ali. E as palavras sonoras que se lhes soltavam do peito foram quantas vezes mais saborosas do que as escritas. Só tiveram sons de amizade, de alegria, de saudade. De coisas boas.
Saiu e foi ao barbeiro. Não que precisasse de cortar o cabelo, mas porque tinha necessidade de falar e ouvir falar de futebol. Como desculpa disse “venho só pedir-lhe que me dê aqui um caldinho, a ver se fico mais novo”…O barbeiro nem podia acreditar no que via…(e via perfeitamente que ele não precisava de caldinho nenhum…). Avançou, de braços abertos, de voz embargada e olhar turvo. Pela amizade e pela mentira. E foi falando no resultado dos últimos campeonatos enquanto muito lentamente, fazia que lhe aparava o cabelo. Quando sacudiu o penteador disse:” o prazer que o senhor me deu em matar saudades é a minha recompensa por este curto tempo de conversa; o tempo real é oferta da casa…
O meu amigo sentia-se feliz como havia muito tempo não se sentia. Durante a doença teve sempre a rodeá-lo a ternura e o carinho da família, dos vizinhos, e até dos velhos conhecimentos. Mas o mal lá estava sempre por detrás de tudo. Agora não – estava tudo a apertá-lo num ciclo de bem por dentro e por fora. Sem lugar.
Para finalizar foi tomar um café. E aí foi a apoteose: na mesa do costume estava o grupo do costume. Levantaram-se, ergueram as chávenas no ar, tocaram-nas todas e disseram em coro “À saúde do querido amigo!” Pousaram-nas depressa e mais depressa ainda correram a abraçá-lo. Aqui foi ele a emocionar-se. E todos queriam saber as últimas notícias da sua saúde, do “ milagre”. Foram os sapatos, repetia ele sem parar. E aqui estou com os meus velhos sapatos. Mas não só com eles: com o meu coração cheio de alegria, de amizade e de saudades. Tudo por vocês.

3.º PASSO
E regressou a casa. Os sapatos tinham-no levado onde ele tanto queria! Sentia-se tão feliz que, pelo caminho, vinha trauteando para dentro e só para si, L’important c’est la rose. Ansioso para contar à mulher tudo o que se passara. Conjeturando sobre os abraços que recebera. Os abraços que dera. Que coisa boa é a amizade! É fantástico ter amigos. Mas sobretudo ser amigo.
“ E o que é um abraço? Tolentino Mendonça diz que, “ Se calhar, a primeira forma do primeiro abraço que demos era apenas um abraço para não cair. Porém, pouco a pouco, num processo paciente onde os corpos fazem a aprendizagem de si (e do amor), o abraço deixa de ser uma coisa que tu me dás ou que eu te dou, e surge como um lugar novo, um lugar que ainda não existia no mundo e que juntos encontramos”.(” In A Mística do Instante, pg. 82).
Num outro lugar e num tempo mais recente, ( nos Encontros do Lumiar) ouvi o autor dizer, na conferencia que fez sobre o tema “ Rezar é abraçar a vida como ela é” (…) Um abraço é o encontro de dois corpos que, aproximando-se geram um desequilíbrio. Se olharmos bem, um abraço são dois corpos quase tombando, inclinados na sua vulnerabilidade. (…) o abraço faz-nos levantar os pés e inclinar o corpo. Obriga-nos a debruçarmo-nos ao encontro de outrem, para além de nós. Tem o seu quê de arriscado, mas nesta inclinação como que se inventa (ou reinventa) uma nova experiência do mundo e da vida”.
É curioso pensar até onde uns sapatos nos podem levar…
17 de julho de 2017

 

Imagem de destaque: Almada Negreiros. Auto-retrato num Grupo (1925)

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