Narciso VI

Fiz de propósito. Sim, fiz de propósito. Servi a minha antecipação num prato de desculpas: “o vento, lá fora, aos safanões com tudo”… “a chuva que singrava sobre as ruas”… “a água que corria sem cessar pelas goteiras”… “os tsunamis levantados pelas rodas dos carros nas sarjetas entupidas…”

– O tempo está impossível, hoje.

Foi isto que disse à Luísa, alagado em atabalhoações. Tentava justificar a ansiedade, o desejo insaciável de estar perto dela, a curiosidade exasperada que as palavras do senhor Narciso, no dia anterior, haviam despertado em mim.

Antes disso, descerrou a porta e fuzilou-me uma vez mais com o seu olhar nuclear, de destruição maciça. Empestou-me com as boas-vindas do costume:

– Já! Chiça, qualquer dia mudas-te para cá… vá lá, entra – disse, abrindo muito os olhos, como um susto.

– … – Comecei por responder com silêncio.

Soube-me bem ver a Luísa, uma vez mais, ali à minha frente, apesar do tom grosseiro dela. É curioso. A ideia recorrente de que uma imagem vale mais do que mil palavras deve ter sido inventada por um banqueiro escandalosamente preguiçoso e avarento, desses que mexe em taxas de câmbio e dívida pública. Todas as imagens que ainda retenho da Luísa possuem um valor infinito, inestimável. Mas a palavra amor é muito mais valiosa: vive acima das possibilidades de qualquer imagem.

Não obstante estar mais do que habituado àquela estranha forma de simpatia abrupta que me cortava aos bocados, apresentei o boletim meteorológico de nuvens cinzentas e vento esfarrapado em altas camadas atmosféricas. Está claro que não o fiz com a serenidade fluente das meninas da televisão. Engasguei-me um pouco, amontoado sobre um arquipélago de interjeições. Creio, no entanto, que a convenci.

Perseverei. (O verdadeiro amor não é coisa que se dilua facilmente por trovoadas de mau-feitio ou por aguaceiros tempestuosos; sou um rochedo projetado contra o mar, julgava eu).

A Luísa ouviu-me com visível desconforto, louca para me fazer desaparecer com um sinal:

– O meu pai está encafuado no sarcófago. Sabes onde é? – ironizou, indicando com o polegar sobre o ombro, como quem pede boleia, a direção do escritório.

Contrafez um sorriso, daqueles que antecedem os momentos em que desatamos a chorar, e não disse mais nada, enquanto aguardava que eu seguisse o meu trajeto. A mulher do senhor Narciso cruzou o corredor, olhou para mim e cumprimentou-me com um gesto mecânico e fugaz que lhe pesou um pouco, mas que se desfez de imediato. Depois evadiu-se para parte incerta, à frente do seu enorme rabo, cujas proporções astronómicas eram razão mais do que suficiente para poder vir a ter estatuto de planeta.

O silêncio é um túnel, uma travessia sobre as brasas da justaposição de todos os barulhos. Foi nisto que pensei enquanto o calor vermelho na cara provocado pelo diálogo com a Luísa me vazava as bochechas, deixando que os passos de borracha nas minhas solas molhadas cochichassem com o verniz do corredor de acesso ao escritório do senhor Narciso.

Nós dos dedos contra os nós da madeira, nós por desatar: bati à porta.

Nada.

Apertei os nós como o laço de uma forca: bati com mais força.

O lado de lá mantinha-se impassível. Nem um rumor. Nada.

Procurei a Luísa. Olhei para trás, perscrutando a extremidade simétrica do corredor. Nem um vulto. Tinha-se esfumado, embora ainda persistisse uma respiração, uma leve maresia de perfume.

Bati uma terceira vez e, não obtendo qualquer retroação, apesar de saber que o senhor Narciso não permitia a entrada de ninguém no escritório sem o seu consentimento prévio, arrisquei.

Entrei muito lentamente, forçando as dobradiças da porta a um lamento metálico prolongado que denunciaria atempadamente a minha presença. Tendo em conta as circunstâncias específicas em que me achava, não pude deixar de pensar na particularidade desse som, igual ao toque de trompetas que anunciavam a presença aristocrática de alguém junto de um imperador.

Mas nem isso foi suficiente. Ao transpor a entrada do escritório, olhei para a secretária como quem esquadrinha um horizonte inalcançável ao fundo do olhar. À prova de humidades sonoras ou de ondas destruidoras, o interior do escritório abafava o clamor da cidade. A rua entrava por ali cortada em bocados ínfimos. Apenas de vez em quando, uma rajada de vento a tatear a vidraça, o espalhafato de um trovão remoto, um avião a furar as nuvens, a buzina assustada de um carro a esquivar-se ao perigo ou outro ruído emergente com sabor a ambulância transpunha a quietude inexpugnável daquele lugar.

Em frente a um arco-íris de lombadas de livros, na parte mais distante e iluminada do compartimento, divisei a figura do senhor Narciso, com a cabeça apoiada numa almofada de braços sobre o tampo do móvel. Dormia ainda a sua imprescindível sesta. Para mim, era já demasiado tarde para voltar para trás. O crime maior de ultrapassar certos limites, acabava de consumar-se.

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