Lisboa VII

Numa escuridão total, de coração partido, cheio de desespero de vergonha e sem dinheiro, escrevi uma derradeira carta à Clotilde. Despedi-me dela com o mesmo asco doloroso que em tempos senti pela minha mãe e pela minha irmã, meretrizes que não cabiam no meu mundo. Não vou entrar em detalhes, porque, ainda hoje, sinto remorsos só de pensar que a minha irmã e minha mãe tinham a latejar dentro de si o mesmo desejo insaciável e promiscuo que fez com que a Clotilde me trocasse pelo Rau-Rau como quem bebe um copo de água depois de outro e depois de outro e depois de outro.

Da mesma forma que se toma um xarope amargo para a tosse, mal conseguia engolir a sensação de rejeição provocada pela lembrança constante da imagem da Clotilde e do Rau-Rau aos beijos. E se essa recordação profundamente melancólica era bastante, a minha imaginação encarregava-se de efabular, repetidamente, como um disco arranhado, o riso de outras gargalhadas, a fusão de outros abraços, a lânguida comunhão de outros momentos de intimidade que me excluíam de uma existência feliz. Nessas alturas de angústia autoflagelada, a minha memória traía-me. Talvez essa maneira de trazer à superfície do pensamento experiências que não vivi sirva menos para lembrar do que para criar um passado que é tanto mais doloroso quanto mais me expulsa dos momentos de alegria que achei serem meus por direito, mas que outros fruíram no meu lugar. Talvez seja isso a frustração: a memória inatingível do que nunca foi.

E, no entanto, eu, o que escrevo, faço o que posso. Os furos na barcaça do tempo fazem com que a memória se comporte como uma quilha furada. Estou, infindavelmente, inundado de passado, pelo que, mesmo que a escrita seja o balde que me mantém a flutuar, a água que verto para fora, enche-me o futuro e volta a entrar pelos buracos que nenhuma lembrança se permite tapar. O naufrágio parece inevitável.

Naqueles dias, o meu orgulho falava-me. Lamentava-me amargamente. Pintava-se-me nos olhos um branco de gelo que me confundia com a tristeza cinzenta do inverno. Não me conformei. Por isso, e enquanto a compaixão do oficial me exilava na sua casa sem pedir nada em troca, entreguei a parte da rotina dos meus dias que sobrava das leituras a perseguir o Rau-Rau. Uma sede incontrolável de vingança insinuava-se em mim com a persistência da fome.

Dissimulado no frenesi da cidade, conheci todos os passos do Rau-Rau da mesma forma que a geografia permite navegar de olhos fechados pelo nome dos rios que rasgam o mapa de Portugal de Norte a Sul. Revisitei os locais que ele próprio frequentava após a sua passagem; apostava com êxito nas sortes que lhe trocavam as voltas; conheci a fundura das poças por onde chapinhava; soube que jardins lhe enlameavam as botas, que tascas lhe matavam a sede, em que quartos adormecia a líbido e que ares matinais abafavam os seus odores; sabia reconhecer na dissimetria matinal da sua cara o lado para o qual adormecera; aprendi a ler nas pedras do chão e nas paredes das ruas o que me diziam os hábitos enquistados do Rau-Rau. Certo de que lhe encontraria uma fraqueza, uma porta mal fechada por onde entrar, estudei-o com a minúcia conformada de um astrónomo obcecado por descobrir um indício de água em Marte, até que o meu sentido de orientação pelo mapa da vida diária do Rau-Rau se transformou em mais uma insondável resposta do instinto.

Num domingo sem luz, dia de São Judas apóstolo, irmão do Senhor Divino, a sombra cinzenta de nuvens pesadas subia pelas margens como espectros até ao Cais do Sodré. Para mim, era um dia de sorte. Os dias de nevoeiro são sextas-feiras treze do avesso: trazem-me auspícios de glória. Acredito que nestes dias de comer nuvens à colherada podem conceder uma elegância infinita à linha do horizonte. Vejo o nevoeiro como uma forma espessa de falhar a realidade, desfocar o tempo, torná-los em perfeitos desconhecidos ou numa fotografia antiga. É assim que retiro as arestas à vida, vejo palácios onde crescem pedras, jardins onde se levantavam as azedas, pássaros em papéis a pairar no ar, estrelas onde brilhavam candeeiros e reis onde passeavam homens simples de chapéu na cabeça.

Saí cedo de casa, apenas com um exemplar do D. Quixote nas mãos, para entreter os nervos. Não foi um acaso a escolha desse livro. Naqueles dias, sentia-me tão só, que aquela história era a única companhia que me oferecia a sensação de estar rodeado por toda humanidade. Passear com ela pela mão, fazia-me encontrar com o peso das minhas próprias contradições e desejos, sentir-me afortunadamente útil no meio do inútil. De resto, à Dulcineia do D. Quixote, eu, igualmente cavaleiro da triste figura, fazia corresponder a Clotilde.

De livro na mão, deambulei pelas avenidas, até me fundir no rasto das ações repetidas do Rau-Rau que tão bem conhecia como a imagem matinal do meu espelho. Já as horas se deixavam engolir nas mandíbulas da madrugada, engoli um punhado de nevoeiro, ocultei-me atrás de carros e esperei. Deixei o tempo andar, embalado pela paciência dos ponteiros do relógio, até que a noite iluminasse as costas alentadas do Rau-Rau e me desse a tão ansiada oportunidade de vingança.

Até que a hora, finalmente, chegou. Foi à saída da boate. Porque a minha figura nunca ofereceu nenhum perigo, interpus-me no caminho do Rau-Rau. E só então me dei conta de como o tamanho dos nossos corpos divergia. O dele, alto, como um astro tremeluzente, o meu, rasteiro como uma serpente, arrastado como a cobardia de uma sombra. Só então percebi que a envergadura dos meus braços não tinha a distância para tomar o balanço necessário aos golpes fatais que via aos pugilistas. Mesmo assim avancei e disse:

– Xeque-mate, sacana!

Os olhos dele piscaram como as asas assustadas de um pássaro. Depois, ouviu-se o embate que me fez lembrar o de um machado contra uma faia e fugi. Deixei o volume do D. Quixote a testemunhar a minha coragem ou a minha loucura ao lado do corpo inerte do Rau-Rau que adormecera no impacto do livro contra a cana do nariz. Nesse momento, pude experimentar o que ouvira um dia dizer ao Rau-Rau ao invejar-lhe a inteligência:

«A sabedoria mata».

No dia seguinte, à pressa, tomado pelo medo e por uma dor de cabeça com raízes na consciência, abandonei a casa do oficial que cuidou de mim.

«Matei um homem. Mas não sei bem qual deles morreu, se fui eu ou o outro!», escrevi, na porta do frigorífico com o baton da mulher com quem dormira depois da agressão. Fiz as malas, que eram os bolsos das calças que me tapavam as pernas, regressei à terra serrana da minha infância. Fi-lo porque acreditava que as saudades da minha mãe e da minha irmã ainda me esperassem.

Continua

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