Jean Genet, o escritor marginal que tornou visível o futuro

capoa livroDas décadas de 1940 a 1950, um fenómeno literário avassalou a literatura francesa, e nunca mais se extinguiu. Deu pelo nome de Jean Genet, figura incómoda, assumido ladrão, marginal, homossexual inquietante. Nomes cimeiros como Cocteau e Sartre apoiaram-no e estudaram-no, Genet será por eles apresentado como um trovão de originalidade na escrita, uma escrita sumptuosa, dilacerante. É incómodo, traz a público uma memória magoada por acusações de roubo, assistência pública e casas de correção, tudo com magnificência verbal, os leitores da classe burguesa rendem-se aos esplendores da forma mas hesitam perante o desvendar destas portas do inferno.

“No sentido da noite”, por Jean Genet, com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, 2016, oferece um quadro antológico de páginas soberbas deste grande escritor, com uma introdução esclarecedora e um apêndice que ajuda a desvendar o processo da escrita de um dos mais malditos literatos franceses do século XX.

A cultura portuguesa tem uma dívida enorme com Aníbal Fernandes, não só pelo esmero do que organiza como pelo talento analítico que revela na apresentação de autores que não estão na berra ou são pouco conformes às modas vigentes: penso em Drieu la Rochelle, Alfred Jarry, Maurice Barrès ou mesmo Irene Nemirowsky. Nesta apresentação de Genet, interrogam-se os colégios, as escolas, a disciplina, como mais adiante as sociedades e as prisões, bem como as chamadas pessoas honestas e os conceitos de beleza moral.

O leitor tem uma excelente oportunidade nesta obra de interrogar as fórmulas teatrais que Genet usou e até desprezou, os fragmentos de textos que escaparam à voragem das iras do seu autor, sempre implacável a rasgar o que não lhe parecia conforme a qualquer sistema de publicação. Há textos inesquecíveis. Logo o que dedica a Abdallah Bentaga que Genet descobriu em 1956, acrobata, que ele irá tratar no texto “O funâmbulo”, para quem desconheça a sumptuosidade do “correcional” Genet, tem aqui um excelente comprovante:

“Uma lentejoula de ouro é uma roda minúscula de metal dourado com um furo ao centro. Fina e leve, pode flutuar na água. Por vezes, uma ou duas pessoas ficam presas nos caracóis de um acrobata (…) O teu arame, encarrega-o da mais bela expressão; não tua, mas dele próprio. Os teus pulos, os teus saltos, as tuas danças – o calão de acrobata os teus fliqueflaques, reverências, saltos mortais, rodas, etc, não vais consegui-los fazer para brilhar, mas para um arame e aço, que estava morto e sem voz, chegar por fim ao canto (…) Se o teu amor, com a tua destreza e o teu ardil, forem tão grandes que descubram as possibilidades secretas do arame, se a precisão dos teus gestos for perfeita, ele correrá ao encontro do teu pé (coberto pelo couro): e, se não fores tu a dançar, será o arame. E se for ele a dançar, imóvel, e se à tua imagem fizer dar saltos, tu, tu onde ficas? (…) As lendas góticas falam de saltimbancos que, não tendo mais para dar, ofereciam à Virgem os seus números. À frente da catedral dançavam. Não sei a que deus vais dedicar as habilidades, mas tens de arranjar um. Talvez aquele a quem darás vida durante uma hora e para a tua dança. Antes de entrares na pista, eras um homem misturado ao bulício dos bastidores. Nada te distinguia dos outros acrobatas, dos pelotiqueiros, dos trapezistas, das amazonas, dos rapazes da pista, dos palhaços – nada, se excetuarmos essa tristeza no olhar, e não vias expulsá-la porque seria pôr fora da porta do teu rosto toda a poesia!”.

Consta que Jean Genet teve tenção de escrever uma obra dedicada a Rembrandt. Tal não aconteceu, mas o seu texto “O segredo de Rembrandt” é um esmalte faustoso, inconfundível, para aqueles céticos sobre a profundidade cultural de Genet, está aqui uma suprema revelação: “A moral que o dirige não é a procura inútil de um ornamento da alma; é a sua profissão que a exige ou, antes, a leva consigo. Podemos dar conta disto porque, devido a uma oportunidade quase única na história da arte, um pintor que pousa à frente do espelho com uma complacência quase narcisista vai deixar-nos, paralela à sua obra, uma séria de autorretratos onde podemos ler a evolução do seu método e que ação ele exerce sobre o homem. Isto ou, realmente, o contrário?”. Aníbal Fernandes adiante um comentário: “Jean Genet sentia Rembrandt como demonstração visual do que ele próprio pretendia fazer passar nas personagens do seu teatro. Ambos tinham sabido, poder-se-á dizê-lo com uma frase do próprio Genet, afastar o que perturba o olhar, para descobrir o que restará do homem quando são retiradas as falsas aparências”. E, mais adiante: “Genet compreendeu a trajetória de Rembrandt como um deslumbramento inicial perante os luxos da visão, mais tarde trocado por outro, com a sua fonte na velhice e no sofrimento, estados de homem reduzido à sua figura única e universal, e na matéria observada através das verdades que lhe não lhe encantam olhar, o que também é despojamento do acessório até à presença do símbolo, incessante procura de todo o seu teatro”.

O Jean Genet de “No sentido da noite” é o íntimo atormentado nas associações com outros artistas, na ufania da exaltação do amor por um jovem acrobata, em todas as dúvidas da sua escrita, naquele outro lado do espelho em que é possível desabafar e sair do silêncio através da escrita, para melhor ser percebido, no somatório das suas verdades e fantasias. Daí dizer que escreveu uma peça por vaidade mas com tédio; que o teatro ocidental é caricatural e não passa de um divertimento. Daí o vitupério elegante que endereça a uma burguesia que ele detesta, mesmo quando lhe compram os livros ou lhe vão ver as peças de teatro: “Os vossos heróis, que incham os vossos livros, as vossas tragédias, os vossos poemas, os vossos quadros, continuam porém a ornamentar-vos a vida enquanto desprezais os seus modelos infelizes. Fazeis bem: eles recusam a vossa mão estendida”. Excelente ocasião para nos rendermos ao onírico e dilacerante Jean Genet.

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