Dor de ser quase dor sem fim

“Dor de ser quase dor se fim”, por Iolanda Antunes, Âncora Editora, 2016, Prémio Literário Vergílio Ferreira, é obra com oficina ousada, mete guerra colonial, descolonização, sonhos de uma geração pós-25 de Abril, uma história de amor quase, que se tornou numa busca com dolorosa espera e muito equívoco nas relações humanas.

A oficina é ousada nesse périplo de décadas em que se cruzam as narrativas, cruzam-se vozes, espalham-se anseios. A autora é uma quase Inês, a quem cabe um papel maior nesta dor de ser quase, dor sem fim, cabem-lhe perguntas muito ansiosas: onde está o meu príncipe, onde está o futuro que me auguraram, de que valeu o sacrifício do meu pai em África? Escrevendo ao amigo, ela declara: “Eu e tu fazemos parte daquela geração para quem a Revolução de Abril não constituiu uma vivência límpida, mas se fizermos um esforço de anamnese, temos de ser justos, havia qualquer coisa na pós-revolução que se sentia como coisa real e concreta. Fomos eleitos. Crescemos num tempo em que os cravos não eram apenas flores, as gaivotas não eram apenas pássaros ou os estranhos apenas desconhecidos, mas todos eles metáforas”. Inês é um derramamento de melancolia, aliás assina cartas intitulando-se rainha da pátria da melancolia. Sabemos mais adiante que lhe está fadado um destino trágico. Um amigo eleito, Carlos, irá ser questionado sobre o trabalho literário de Inês, Carlos é um retornado, guarda más recordações daqueles tempos de 1975 e Angola é uma saudade: “Os dias em Angola, de um sol reluzente, de uma luz incandescente, de cores garridas, permaneceram em mim como um remanescente genético, como um acrescento ao meu ADN, que aumentava exponencialmente o contraste com os dias pardos da metrópole. Está ainda muito presente em mim a impressão do primeiro contacto com este país, a impressão do cinzento, de pessoas tristes e antipáticas, vestidas de escuro como no luto ininterrupto”. Guarda como ferrete em brasa o termo retornado. O que o irmana a Inês (ambos citam Manuel Alegre) é a pertencerem a uma geração que foi atropelada pela História.

Amores avulsos e convulsos de Inês são desfiados mas nunca verdadeiramente desvendados. Há nesta geração um cofre de reminiscências do Portugal agrário, Inês dirá mesmo “via-me a arrumar as botas de borracha dos dias em que, menina, arranhava os torrões da terra da horta com enxada e nas minhas mãos afloravam bolhas cuja dimensão crescia até rebentar em calos”. No cruzamento das vozes há outros ressentimentos mas também exaltações como a da aluna Soraia que não esqueceu a professora de Português, Inês Carpinteiro. Soraia também veio de Angola e desabafa: “Meu coração ficou todo lá, no chão de Luanda, onde eu sempre que me senti em casa, aqui, o céu é pequeno, se aperta entre duas paredes grandes e parece torturado, não é aquele céu de peito cheio de ar, que me alegrava no seu riso de vermelhos incêndio. Onde há Inês há também um Pedro, um outro professor, que escreverá “Mas amar-te, não te amava não”. Mas tem palavras bondosas e grandiloquentes para acenar a tal amizade: “Era só porque o teu olhar da sentimento às minhas preleções me fazia sentir venerado. Era só porque as tuas palavras me pareciam matizes do teu sorriso e o esvoaçar das tuas mãos aves a libertarem-se do seu jugo”.

Quando a tragédia de Inês se encaminha para o seu desfecho as suas cartas para o confidente Carlos são translúcidas, e da amargura se passa à confissão resignada de um estado de serenidade: “Vivi os últimos 20 anos da minha vida angustiada com os amores que não me foram advindos, com os sonhos que não materializei, com o fluir constante do tempo, a presença do adeus e a aproximação galopante da morte e, no entanto, ao invés de aceitar com sabedoria os ensinamentos da vida e os seus revezes, resignando-me à sua implacabilidade, esvaí todos os meus dias num braço de ferro com Deus, invetivando-o de pai desnaturado, que não soube amar-me e do qual sempre me senti órfã. Mas a supremacia e grandeza de Deus manifesta-se sempre no seu silêncio supremo e na sua impassível indiferença, esta é a ironia absoluta da vida”.

O leitor rende-se a esta oficina onde se cruzam as vozes, os temperos e os destemperos, o quase de uma geração, o adiamento da concretização de esperanças e a incapacidade de as atingir. Mas tudo se lê com a sensação de que o trabalho oficinal implicou um perigoso artificialismo da escrita, o afã de mostrar cultura e de que muito se leu, escreve-se a mostrar conhecimento, e então o escritor é encarado na sua prosápia de culto novo-rico. São nomes em catadupa, citações em catadupa, de livros, de canções, de filmes, de quadros e outra obras de arte, diz-se repetidamente que Inês tinha a obsessão dos livros e como cada autor se esconde nos seus personagens Iolanda Antunes excedeu-se com tanto Camus, Sophia de Mello Breyner, Luandino Vieira, Éluard. Nesta melancolia que trespassa a obra à outro excesso para além das citações, o de comparar o destino de Inês ao destino de Portugal: “Ambos perdidos na visão que tiveram e si, afundados na nostalgia de um passado de bruma, à espera de um futuro que jamais chegará”. O livro de Iolanda Antunes poderá ser um hino à literatura portuguesa, uma ousadia do retrato social de Portugal nos últimos 40 anos, admitamos que a Inês faz parte do “quase” de uma geração, admitamos o “quase de um país que almejou e ainda não alcançou, mas os sonhos gorados da dor infindável de Inês não é, em rigor, o sentimento geral dos portugueses. Fica-se com a esperança de que este primeiro romance catapulte outras obras mais estruturadas e com menos citações.

 

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