Álvaro Cunhal, uma biografia política

É um dos grandes acontecimentos da edição em 2015, porventura o volume da biografia de Álvaro Cunhal melhor conseguido como narrativa histórica: Álvaro Cunhal, o secretário-geral, por José Pacheco Pereira, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2015. Na aparência, temos um período muito curto, uns escassos noves anos. Mas que turbulência nesses anos! É a fuga de Peniche, audaciosa, cresce a lenda do comunista que leva 11 anos de prisão e a quem a PIDE jamais irá deter, partirá para o exílio, primeiro para Moscovo, depois para Paris. Cunhal está polarizado num objetivo, atacar a fundo o chamado “desvio de direita”, em sucessivas etapas Júlio Fogaça e os seus apoiantes serão apeados da direção do partido, o fito de pôr a casa em ordem passa por inúmeras críticas, denúncia de traidores e adoção de uma nova linha política; eleito secretário-geral do PCP, frenado o chamado aventureirismo de direita e a estratégia pacifista adotada no V Congresso, Cunhal vai residir em Moscovo com a sua companheira e filha, dali lhe vão chegando notícias terríveis de prisões e o desmembramento da direção na clandestinidade, em Portugal. Em Moscovo, vai ser protagonista do maior drama entre comunistas, o mais representativo e determinante da perda da hegemonia soviética à escala global: o diferendo com os chineses, inicia-se uma tempestade tão forte que conduzirá a expulsões, desconfianças, perseguições. A linha marcada por Cunhal pautará a conduta dos comunistas portugueses até à queda do muro: estar sempre ao lado do bastião URSS, sem desfalecimentos. Estamos num período em que iniciou a guerra colonial, em que uma frente patriótica se posiciona em Argel, em que Delgado se apresenta como o chefe de oposição, a URSS mudou de estratégia e a sua “coexistência pacífica” não a impede de apoiar os movimentos independentistas.

21_livro_cunhalO conflito sino-soviético faz os seus rombos, temos uma cisão de peso, Francisco Martins Rodrigues. Cunhal redige o documento “Rumo à Vitória”, peça fundamental para o VI Congresso, que se realizou em Kiev, o partido conhece nova remodelação. A companheira de Cunhal parte para Bucareste, Cunhal fica a viver com a irmã dela. Estamos já em 1965, a situação europeia já não é a mesma que se vivia em 1945, há novas interferências, há partidos comunistas a pôr em prática novos relacionamentos, a sociedade de consumo fez sair muitos destes povos da destruição do pós-guerra, o operariado e os trabalhadores dos serviços mudam de inquietações. É neste contexto que se desenrola uma nova tragédia: a Primavera de Praga e a invasão da Checoslováquia, Cunhal impõe a linha de apoio à URSS, mas à custa de enormes estragos, isto numa altura, como escreve o autor em que “O ano de 1965 foi um ano charneira em praticamente todos os movimentos colonistas e revolucionários europeus, mostrando uma nova face do esquerdismo, a diversificação de centros de poder, as mudanças temáticas e de agenda revolucionária e a ‘velhice’ europeia do movimento comunista internacional liderado pela URSS. No caso português, após o ano muito difícil de 1968 no contexto do comunismo internacional, o primeiro sinal político inequívoco do fim da ditadura era dado pelo fim do longo período de poder de Salazar”. O autor não escolheu por acaso 1968 como um marco miliário no trabalho de Cunhal, e observa: “O modo como entrou no marcelismo, negando qualquer evolução, levou a cometer uma série de erros que poderiam ter posto seriamente em risco o papel do PCP na oposição portuguesa. Isso desloca-o para uma competição à esquerda, com a criação da ARA, numa altura em que qualquer ação violenta na década de 70, feita debaixo do guarda-chuva do PCP, reforçaria mais os esquerdistas, dando-lhe razão retrospetiva (…) À data do 25 de Abril, era evidente que o PCP que sobrava era um PCP do passado, o PCP dos anos áureos da década de 40 ou do fluxo revolucionário de início da década de 60. De onde vinham os quadros do PCP? Do MUDJ e dos movimentos da paz pró-soviéticos dos anos 50. Entretanto, tinham passado mais de 25 anos. Por tudo isto, Cunhal vem passar cada vez mais a escrever contra. Contra os desvios de direita, contra os desvios de esquerda”.

Pacheco Pereira dá-nos um Cunhal de carne e osso, a sorrir ternurento para a filha, colérico e por vezes brutal nas discussões coletivas, admirado como um mito nas fileiras do comunismo internacional, temos aqui uma biografia política sem concorrência para as próximas décadas.

 

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